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Leonardo Sakamoto

Mulher gosta mesmo é de trocar o sachê da privada. É sim! Eu vi na TV

Leonardo Sakamoto

08/03/2014 09h25

Neste sábado (8), celebramos o Dia Internacional da Mulher. Como profissional da comunicação, área com maioria feminina, mas em grande parte coordenada por homens que reforçam preconceitos de gênero, resolvi atender a leitores que pediram que um texto fosse atualizado e trazido para cá.  Ofereço, pois, vertido em porcos versos, minha singela homenagem e o nosso mea culpa. Pois, como todos sabemos, os comerciais de TV e a nossa mídia em geral "entendem" muito bem quem é e, principalmente, o que deve ser a mulher brasileira.

A mulher do comercial da TV

Ela é simpática, meiga, solícita, esperta.
Independente, mas multitarefa.
Não é que não queira a ajuda de ninguém,
ela sabe que ninguém faz seus deveres tão bem.

Faz questão de trabalhar o dia inteiro
E chegar em casa e cuidar de tudo primeiro.
Mas se o pobre do marido aguentar,
Muito sexo dela ainda vai ganhar.

Ela entende que a felicidade reside em uma boa faxina.
Pois aprendeu isso desde menina.
Daquelas pesadas, que incluem tirar gordura do fogão,
O pó que se esconde nas frestas e a sujeira do chão.
Desde que os produtos usados não irritem para sempre
E que o sachê para privada possa ser trocado facilmente.

Afinal de contas, ela não é uma coitada para se sentir dó
Sonha no Dia das Mães ganhar geladeira e aspirador de pó.

Ela ama cozinhar para os amigos dos rebentos
Garantir papinhas, fazer sanduíches, prover sustento
É sempre ela que abre as garrafas de refrigerante
Engordando a molecada a todo instante.

Pois é raro homem na cozinha em comercial.
Ele só vai preparar pratos refinados, gourmet.
No dia a dia, o reino das panelas é das mulheres.
Para ele, outras tarefas: como anúncio de TV
De carros tão potentes que chegam antes de ter saído
Ou de cerveja, como se álcool fosse pavê
Aí ressurge a brasileira, pelada, sensual
Quase pedindo: "vem cá, me beba inteira, me ame".

Voltemos à mulher que acabou da louça lavar
Com um detergente que transforma prato em espelho
É ela quem coloca a roupa do futebol do marido velho
Na máquina com um sabão que o encardido vai tirar.

Ela, que nasceu com um cabelo cacheado,
Aproveitou o tempinho livre para ele alisar
Com chapinha que comprou por um preço legal
Para igual às amigas e às modelos ficar
Que atendem a um padrão de beleza traçado
Por uma elite de outro país, outro lugar
Com a mensagem: branco é bom, negro é mau.

Ela ainda aproveita alguns segundos para a barriga untar
Com gel emagrecedor e alguns comprimidos tomar
Feitos com esterco de besouro caolho de Myanmar
Que promete emagrecer e, ao mesmo tempo, depilar
As pernas peludas que o marido disse detestar.

Ela.
Está cansada.
Desanimada.
Estressada.
Esgotada.
Fatigada.
Amuada.

Mas o marido, depois de tanto comercial de cerveja
Quer que tudo esteja pronto e sobre a mesa
Ou sobre a cama.
E que de manhã, antes dele, ela esteja de pé.
Coitado, trabalha tanto para nos sustentar, né?

Corre ao banheiro e esconde o tempo, o cansaço
E a idade com maquiagens mil.
No espelho, ao ver outra mulher que não ela
Uma mulher que tem certeza que viu
Dia desses na TV, faz um aceno, oferece um abraço.

Então, respira fundo para poder a vida aceitar
Aquilo que os comerciais garantiram ser felicidade.
Deita-se na cama, enquanto espera o marido terminar
E, sozinha, viaja para longe do quarto, da casa, da cidade

E pensa: não é muito mau
Que antidepressivo
Daqueles de uso intensivo
Não apareça em comercial?

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.