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Leonardo Sakamoto

Palavras podem cair em desuso. Mas "idiota" continuará sempre na moda

Leonardo Sakamoto

11/03/2014 17h42

A língua é um troço vivo. Vai mudando conforme o tempo e influências, como a cultura e a tecnologia. Portanto, vejo com alegria termos "deletado" do convívio cotidiano o ato de chamar alguém de "tigrão", o que era comum na época em que minha mãe soltava gritinhos histéricos para Roberto e Erasmo na porta do teatro Record. Ou usar expressões cuja sonoridade me irrita, como "Batata! A patota inteira vai estar lá, mora?" Dá até arrepio de ouvir.

Mas há certas palavras, que foram substituídas para tornar a vida do andar de cima mais fácil, que fazem falta pela sua objetividade e simplicidade. Por exemplo, "demissão" e todas as variações do verbo "demitir".

Muitas empresas não dizem mais que demitiram 1.300 empregados. Falam que "descontinuaram os contratos" ou "interromperam o relacionamento". Parecem querer, dessa forma, se livrar do ônus negativo de uma ação que muito raramente é vista como algo que mereceria um Troféu Joinha.

Um amigo da área de RH de uma multinacional disse que não sabia onde enfiar a cara quando chamou um homem muito, muito simples para informar que ele seria descontinuado. "O senhorzinho não entendia nem por um decreto que estava sendo demitido", diz ele – que teve que apelar para o método antigo, quando foi claramente compreendido.

Os "jênios" que inventaram isso para facilitar a vida das empresas esqueceram que não adianta flambar merda com azeite trufado e polvilhar com sal retirado do deserto de Gobi e especiarias do Rajastão. No final, vai continua sendo merda.

Em outras palavras, seguirá sendo um "pé na bunda", uma "degola", um "chute no traseiro" e tantos outros sinônimos populares criados para explicar uma demissão.

Quem nunca, em uma mesa de bar com amigos, com uma cara inchada de choro disse algo como "resolvemos terminar o relacionamento" e recebeu como consolo algo como "putz, ela te deixou!". É… Não adianta achar que o povo é burro.

Aliás, as empresas não falam mais em "empregados". Agora são "colaboradores". Há várias razões que explicam, muitas delas traçando um resgate da ação coletiva de sinergias voltadas à construção de um objetivo comum… Zzzzzz… Prefiro a explicação mais simples que surgiu de outro colega, do RH de uma grande empresa brasileira: "isso foi para botar no mesmo pacote o pessoal que é contratado como CLT e quem é terceirizado ou integrado mas, na prática, também é empregado nosso". Enfim, todos colaboram com o lucro do patrão, portanto faz sentido.

Outras vezes, na falta de equivalentes decentes, as palavras simplesmente desaparecem. Na vitoriosa ação dos garis no Rio de Janeiro, era raro encontrar membros da administração municipal ou pelegos que tratassem aquilo pelo seu nome verdadeiro: greve. Esse é outro termo que virou maldito. Bom mesmo é receber um aumento anual ridículo, ter que fazer frilas de madrugada e aos finais de semana para poder pagar a escola dos filhos que subiu mais do que o salário e continuar achando que discutir direitos trabalhistas é coisa de gente pobre e rançosa.

Enfim, é natural que a língua evolua. Mas algumas coisas deveriam continuar sendo chamadas pelo que realmente são.

Poderia fazer uma lista gigante de casos – como chamar de "desentendimento de casal" uma porrada no rosto da namorada, de "corretivo" um espancamento, às vezes até a morte, de uma criança pelos adultos responsáveis, ou de "forçar a barra" as tantas tentativas de estupro que acontecem nas "famílias de bem".

Prefiro, contudo, ressaltar um em especial. A pessoa que defende que brancos tenham mais direitos efetivados que negros e indígenas, que homens ganhem mais do que mulheres, que gays, lésbicas, mulheres e homens trans tenham que se esconder, que ricos devem ser mais protegidos do que pobres, não está "exercendo seu direito à liberdade de expressão". Não, não.

Essa pessoa é simplesmente idiota. Tem cura, mas, até lá, vai continuar idiota.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.