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Leonardo Sakamoto

Golpe de 1964: aqueles que sentiam prazer em torturar estão por aí

Leonardo Sakamoto

31/03/2014 16h05

Durante as sessões de tortura realizadas no 36o Distrito Policial (local que abrigou a Oban e, posteriormente, o DOI-Codi, na capital paulista), os vizinhos do bairro residencial do Paraíso reclamavam dos gritos de dor e desespero que brotavam de lá.

(Tente dormir tendo, ao lado, um ser humano sendo moído em paus-de-arara, eletrochoques, "cadeiras do dragão" e tantos outros métodos criativos aplicados na resistência pela ditadura militar. Tente, ao menos, viver.)

As reclamações cessavam com rajadas de metralhadora disparadas para o alto, no pátio, deixando claro que aquilo continuaria até que o sistema decidisse parar.

Mas o sistema não parava. O sistema nunca para por conta própria.

A noite de Maria Aparecida Costa durou três anos e meio, dos quais dois meses naquele local. "Fiquei presa ali." Ela aponta janelas no primeiro andar do prédio ao lado do pátio onde, nesta segunda (31), realizou-se um ato em memória dos 50 anos do golpe de 1964.

A tortura firmava-se como arma da disputa ideológica. Era necessário "quebrar" a pessoa, mentalmente e fisicamente, pelo que ela era, pelo que representava e pelo que defendia. Não era apenas um ser humano que morria a cada pancada. Era também uma visão de mundo.

Ainda hoje, Cida tenta entender o que ocorreu. "Tinha mais alguma coisa. Claro que a justificativa era ideológica. Mas tinha mais alguma coisa. Porque eles sentiam prazer de verdade no que faziam. Prazer de verdade em torturar."

Dizem que os carrascos não podem pensar muito no que fazem sob o risco de enlouquecerem. Mas também dizem que os melhores carrascos são os psicopatas que gostam do que fazem. E se dedicam com afinco a descobrir novas formas de garantir o sofrimento humano.

Muitos dos que fizeram o serviço sujo para a ditadura e passaram por aquele prédio amavam sua "profissão".

Para Cida, eles não viam pessoas. Enxergavam nos presos políticos uma ausência completa de características humanas.

Não acreditavam simplesmente estar em uma guerra. Se assim fosse, haveria protocolos internacionais proibindo o que foi feito. Muito menos em uma missão divina porque Deus, se existir, nunca ouviu os gritos que saíram de lá. O que havia nas celas era, para eles, a representação do mal.

E o mal precisa ser extirpado.

"O ódio… Eu não consigo, até agora, entender de onde vinha tanto, tanto ódio."

Talvez, como lembra Cida, a sensação de poder. De fazer porque se pode fazer enquanto o outro nada pode.

O Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna DOI-Codi era integrado por membros do Exército, Marinha, Aeronáutica e policiais.

As mesmas forças armadas que não têm coragem de assumir as torturas e mortes cometidas sob sua responsabilidade em centros de terror durante a ditadura.

Foram corajosos contra homens e mulheres despidos de dignidade, amarrados em celas escuras, urrando de dor. Mas vão passar a covardes diante da História, membros de uma instituição que não consegue fazer uma reflexão sobre seu passado para planejar o seu futuro.

Enquanto isso, a metodologia desenvolvida durante esse período e a certeza do "tudo pode" continua provocando vítimas em outras delegacias espalhadas pelo país e nas periferias das grandes cidades, onde a vida vale muito pouco.

A tortura é ferida não curada e, portanto, segue a toda sendo praticada por agentes do Estado, principalmente contra a população mais pobre.

(E aos leitores com cérebro de camarão que não sabem que a terrível violência cometida pelo Estado tem uma série de agravantes em relação à terrível violência cometida por criminosos comuns, entrego o meu desprezo.)

Cida foi, depois, transferida, quando conheceu Dilma Rousseff.

Tenho muito mais pontos de divergência do que de concordância com a presidente. PT e PSDB, na minha opinião, adotaram padrões de desenvolvimento que muito se assemelham aos dos verde-oliva, o de que vale tudo em nome do "progresso".

Mas o fato das forças armadas terem que engolir uma ex-presa política, torturada, como sua comandante-em-chefe e que isso irrita supremamente parte dos militares que se reúnem para tomar chá de pijama e sentir saudades da censura mostra que a mesma História nem sempre é justa. Mas tem senso de humor.

Nesta segunda, o ministro da Justiça José Eduardo Cardozo pediu desculpas, em nome do Estado, pelas mortes e torturas durante a ditadura.

Não basta. Quero ver os comandantes das forças armadas pedirem desculpas públicas.

E mobilizarem suas instituições (e seus arquivos) para revelarem onde estão os corpos dos desaparecidos, entre tantas outras demandas pendentes.

Daí, podemos começar a fechar um capítulo da nossa história e a acreditar que essas instituições conseguiram fazer a transição para a democracia.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.