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Leonardo Sakamoto

Ocupação de prédio nos Jardins: coisas mágicas acontecem durante a Copa

Leonardo Sakamoto

15/06/2014 10h19

Quem disse que coisas mágicas não acontecem durante a Copa do Mundo? Durante a abertura do evento, na última quinta (12), um grupo de 150 trabalhadores sem-teto ocuparam um prédio na rua Pamplona, nos Jardins – região com alto preço de metro quadrado e poder aquisitivo. Organizado pelo Movimento de Moradia da Região do Centro, eles estão a duas quadras da avenida Paulista, como relata matéria da Folha de S.Paulo.

Um amiga que é vizinha ao edifício ocupado confirmou que ele está vazio há mais de cinco anos, tendo causado, inclusive, problemas de infiltração no prédio ao lado sem que os proprietários se dignassem a resolver.

Daí você me pergunta: e qual a magia de ver um imóvel, localizado em um bairro dotado com infraestrutura, sendo ocupado por outras pessoas, que não batalharam comprá-lo ou não tiveram direito a uma herança, só porque ele está fechado há anos, sendo casa de ratos e baratas, enquanto milhares de pessoas vivem em habitações precárias ou na rua? Ou, melhor: por que esse pessoal não vai ocupar imóvel no extremo da periferia e para de incomodar as "pessoas de bem"? Daí eu te pergunto: você está precisando de um abraço?

O direito à propriedade não é absoluto, pois a efetivação dos direitos fundamentais (como direito à propriedade, à moradia, à educação, à alimentação, ao trabalho decente, à saúde, à liberdade de expressão… achou que direitos humanos só era "coisa de bandido", né?) depende de uma costura em que nenhum deles avance sobre o outro a ponto de cometer injustiças. Em outras palavras, se uma pessoa rica puder ter ao seu dispor toda a terra de um país, como é que as demais vão exercer seu direito à alimentação ou à moradia?

Como já disse aqui, acho fascinante entender quem chama os que lutam por moradia, ocupando áreas e imóveis, de vagabundos. Aliás, boa parte dos trabalhadores que entraram na linha do consumo, há poucos anos, adota com facilidade o discurso conservador. Talvez porque conquistaram algo com muito suor e têm medo de perder o pouco que têm – o que é justo e compreensível.

Mas isso tem consequências. Em posts sobre déficits qualitativos e quantitativos de moradia, por exemplo, quem tem pouco adota por vezes um discurso violento, que seria esperado dos grandes proprietários e não de trabalhadores. Afirmam que, se eles trabalharam duro e chegaram onde chegaram sozinhos, é injusto sem-teto, sem-terra ou indígenas consigam algo de "mão-beijada" por parte do Estado.

Ignoram que o que é defendido por esses excluídos é apenas a efetivação de seus direitos fundamentais: ou a terra que historicamente lhes pertenceu ou a garantia de que a qualidade de vida seja mais importante do que a especulação imobiliária rural ou urbana.

Bem, como já disse aqui antes, se você é do tipo que acha bonito aquela parábola do sujeito que, diariamente, pega estrelas-do-mar e as joga na água, achando que está fazendo sua parte para salvar o mundo, meus parabéns. Provavelmente, também acha que apenas doar agasalhos resolve o problema de quem está passando frio do lado de fora e que a vida vai mudar com a somatória de pequenas ações de caridade coloridas e cintilantes. Leva para a rua cartazes pedindo mais educação, mais saúde, mais segurança e, ao mesmo tempo, quer menos impostos e menos Estado, não?

A ideia de que exercer a responsabilidade individual, tomando cada pessoa em situação de rua ou sem-teto pelo braço e levá-los para casa, vá resolver algo é um discurso fácil que colocam na sua cabeça para fazer com que o Estado não exerça esse papel – o que significa mudar as prioridades do poder público.

O déficit qualitativo e quantitativo de habitação poderia ser drasticamente reduzido se esses imóveis trancados há anos pudessem ser desapropriados e destinados gratuitamente para quem precisa. É um custo que, sim, temos que pagar para as famílias de baixíssima renda.

Enquanto isso, Estado e município apenas timidamente agem para enfrentar os grandes latifundiários urbanos. Há vários prédios que devem milhões de Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e poderiam ser alvo do Decreto de Interesse Social, uma vez que permanecem vagos por anos. Mas em uma sociedade cuja pedra fundamental são a intocabilidade da propriedade privada e a possibilidade de lucro e não o respeito à vida isso fica difícil. O que temos hoje é um caso ou outro, mas nada que se assemelhe a uma reforma urbana.

A área central de São Paulo é alvo prioritário dos movimentos por moradia por uma razão bem simples: porque já tem tudo, transporte, cultura, lazer, proximidade com o trabalho. Mas não deveria ser o alvo único, pois há prédios vazios, espalhados por bairros com infraestrutura e serviços.

Ao longo do tempo, fomos expulsando os mais pobres para regiões cada vez mais periféricas. Eles, que possuem menos recursos financeiros, gastam mais tempo e mais de sua renda com transporte do que os mais ricos que ficaram nas áreas centrais (com exceção dos condomínios-bolha espalhados no entorno, como as Alphabolhas, com suas dinâmicas de segregacionismo próprias).

O artigo sexto da Constituição Federal garante o direito à moradia. Mas este blog o considera uma piadinha colocada lá pelos constituintes. Do mesmo naipe daquela anedota contada no artigo sétimo que diz que o salário mínimo deve ser suficiente para possibilitar "moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social". Se o artigo sétimo fosse verdade, talvez pudesse ajudar o sexto a ser também.

Função social da propriedade? Por aqui, isso significa garantir que a divisão de classes sociais permaneça acentuada como é hoje. Cada um no seu lugar. Afinal de contas, viver em São Paulo é lindo – se você pagar bem por isso.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.