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Leonardo Sakamoto

A USP não está na lama por conta de ataques de zumbis comedores de cérebros

Leonardo Sakamoto

15/08/2014 16h31

A USP não está quebrada porque um grupo de zumbis comedores de cérebros gerados a partir de experiências com fofos cachorros infectados nos laboratórios do Instituto de Biociências atacaram os pesquisadores. Muito menos porque o Godzilla transformou a Praça do Relógio em playground e a Reitoria em ninho. Nem por conta de naves alienígenas que, pousando (claro) em cima da Escola de Comunicações e Artes abduziram o caixa da universidade para gasta-lo em Las Vegas. Ou porque a terra contaminada retirada do local onde foi construído o Templo de Salomão e depositada no campus Leste da USP (o pior é que essa parte é verdade…), continha também restos de um antigo cemitério indígena, amaldiçoando eternamente a instituição. Mas sim por culpa de sucessivas gestões, eleitas de forma pouco democrática, que tomaram decisões que levaram a universidade à lama – gestões chanceladas pelo poder público.

Agora que a sua pior crise está instalada e fala-se abertamente de programas de demissão voluntária e redução de carga horária, desponta também, aqui e ali, a cantilena que causa orgasmo em muita gente: a gradual privatização da USP, através da cobrança de mensalidades, de taxas, de venda de espaços publicitários, de nomes de salas, de produção de pesquisa voltada apenas à necessidade das corporações, em suma, de otimização da gestão educacional utilizando critérios de sucesso considerados efetivos pelo mercado.

Como aqui já disse, uma universidade pública, como qualquer órgão público, deve ser gerida pelos princípios da impessoalidade, moralidade, publicidade, economicidade, eficiência e legalidade. Mas também não ignorar as necessidades dessa sociedade nas decisões sobre qual conhecimento terá sua produção financiada. Conhecimento feito por quem que beneficia a quem?

O conhecimento tem que beneficiar também o mercado, mas não ser pautado exclusivamente por ele sob o risco da universidade se tornar mero instrumento acessório das corporações.

Que não pensam no "social", ao contrário do que belos comerciais de TV com crianças saltitantes, dentes-de-leão esvoaçantes e imagens de felicidade em câmera lenta querem fazer crer.

É claro que a cobrança de mensalidade traria mais recursos para universidades públicas. Garantindo poucas bolsas e cobrando de "quem poderia pagar" (o que, acreditem, pode ser bastante subjetivo), poderíamos ter um perfil semelhante a grandes instituições norte-americanas. Tanto no ensino, na pesquisa e na extensão quanto também na elitização, na exclusão e na baixa pluralidade.

Quem sabe, ao final, a gente não importa uns figurantes bonitões e altos para ficarem circulando no campus a fim de darem um ar mais internacional à instituição?

No começo do ano, fiz uma provocação: bora reservar 99% das vagas da universidade para escola pública, cotas raciais e famílias de baixa renda. E o restante reservamos para alunos cujos pais possam pagar altas mensalidades. E isso sendo por curso, claro. Porque medicina, engenharia, direito, jornalismo são bem ocupados por quem estudou em caras escolas enquanto cursos com menos status ou que dão menos retorno econômico são mais preenchidos por quem fez escolas públicas. Mesmo com a política de cotas existente hoje na universidade.

Antes que organizem novamente um protesto na frente de casa (hihihi), é claro que esse 99 x 1 é a provocação. Pois o poder público tem a obrigação constitucional de manter a universidade pública, gratuita e de qualidade para todos e todas, independentemente da classe social. E garantir o aumento no número de vagas para abraçar, com qualidade, quem realmente não pode pagar as escorchantes mensalidades de uma boa instituição privada.

A USP possui um muro ao seu redor – um muro físico que não deixa de ser uma tradução de uma visão segregacionista. Os cidadãos comuns, que não têm acordos de uso do campus ou não são parte da comunidade de estudantes, professores e funcionários, acabam não podendo usufruir desse espaço público entre a tarde de sábado e o domingo – logo no momento em que teriam para descansar de uma semana de trabalho.

Quando eu era criança, não era assim. Mas, veja bem que coisa: quando eu era criança, vivíamos em uma ditadura.

A discussão não é de hoje, mas antiga. Houve muitos protestos – ainda há. Mas um pequeno grupo de "jênios" que acha que sabe o que é bom para a USP deve ser bem forte porque vence sempre a esmagadora maioria que forma a melhor universidade do país.

Em seu significado original, a palavra "crise" também envolve "mudança". Este é, portanto, um momento-chave: queremos afunilar a USP para que, cada vez mais, sirva aos interesses de alguns ou fazer as mudanças necessárias para que seja um instrumento de fomento da democracia e da sociedade como um todo?

Passei boa parte da minha vida na USP, seja estudando, pesquisando, dando aula, atuando em projetos de extensão universitária. Amo aquela instituição. Mas sempre me deu um nó na garganta o fato de que a USP se achar tanto…USP. Chegou a hora de olhar para fora do muro, em todos os sentidos.

Em tempo: Com a morte de Nicolau Sevcenko, um dos melhores professores que já tive, um pouco da USP morreu junto também.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.