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Leonardo Sakamoto

Bombas de Pinho Sol: somos todos anões de jardim que amam o cativeiro

Leonardo Sakamoto

26/08/2014 18h14

Cerca de 400 anões de jardim desapareceram na Áustria.

Eles estavam sendo usados como material de campanha de um partido de esquerda, que acusa um grupo conservador pelo sumiço. Uma recompensa de R$ 3 mil está sendo oferecida para quem puder dar informações sobre o paradeiro dos anões.

De qualquer maneira, o partido que se sentiu furtado já encomendou mais 20 mil deles, segundo a BBC.

Isso me lembrou um grupo que tem atuado na França pela liberdade daqueles que são incapazes de lutar por seus direitos. Mas que, humilhados e maltratados, servem aos fetiches de uma sociedade onde o kitch foi reformado e hoje é hype, cool e übber.

A Frente de Libertação dos Anões de Jardim tem resgatado estátuas que, usualmente, vêm em grupos de sete, devolvendo-as para florestas e bosques. Ou recolocando-as em escadarias de igrejas e outros lugares santos.

Uma estimativa aponta que o grupo tenha libertado mais de seis mil criaturas na França. Seis mil! Onde quer que estejam agora, já se tornaram um condado maior que o de Frodo.

Certa vez, em uma ação dramática, 11 anões de jardim foram encontrados, enforcados em uma ponte francesa, como forma de protesto pela manutenção dessa exploração. Junto a eles, um bilhete de suicídio coletivo.

No ano passado, fui surpreendido com a notícia de que um dinossauro de sete metros de altura foi roubado de uma rotatória na zona sul de Marília, interior do Estado de São Paulo.

Não tenho muito mais informações, mas os sequestradores teriam utilizado uma caminhonete na fuga, que acabou por colidir com outros veículos, fazendo com que o refém fosse deixado para trás – não sem ferimentos.

Os sequestradores de Marília talvez estivessem resgatando o dino para ser libertado em alguma área rural a fim de viver feliz.

Ou talvez qualquer outra razão.

Pois uma ação como essas deve ter um sentido.

Precisa de um sentido.

Um porquê.

Mas por quê?

Sinto a falta de ações como essas, que exponham publicamente o quanto somos ridículos.

Prova disso é que o catador de material reciclável, Rafael Vieira Braga foi detido no dia 22 de junho do ano passado, acusado de carregar dois coquetéis molotov perto de uma manifestação no Rio de Janeiro.

Sua defesa alega que carregava produtos que seriam usados para limpar e desinfetar o local em que dormiria, na rua, à noite.

Um laudo da polícia civil concluiu que o material apreendido teria ínfima possibilidade de funcionar como coquetel molotov, de acordo com matéria da Folha de S.Paulo.

Mesmo assim, em dezembro, a Justiça o condenou a cinco anos por posse de explosivo – pena que foi reduzida em quatro meses nesta terça (26). Alegam que ele já havia sido condenado duas vezes por roubo.

Mas isso não indignou quase ninguém.

Este texto, portanto, não é para falar sobre anões.

E sim para lembrar que a vida real tem muito menos sentido do que os sentidos que insistimos em colar nela.

O fato é que nos acostumamos a uma existência nonsense, em uma realidade nonsense, por uma Justiça muitas vezes nonsense.

Feito anões de jardim, que se acostumam com o cativeiro.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.