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Leonardo Sakamoto

Pedi um fascista de presente, mas minha mãe diz que eles mordem

Leonardo Sakamoto

16/10/2014 10h07

Gostaria muito de entender o trauma de infância, o tipo de insegurança, a falha na formação do caráter, a ausência de vitaminas no crescimento (faltou ferro, certamente) ou a doença adquirida ou desenvolvida que leva alguém a querer machucar fisicamente e até matar outra pessoa por uma discussão sobre política. Afinal, alguns milhares de anos de história humana deveriam ter servido para que deixássemos o tacape de lado ao tratar do bem comum.

Desde que os ânimos eleitorais se acirraram, recebo textos e vídeos todos os dias com gente sendo ameaçada ou apanhando por defender uma candidatura ou partido político.

A intolerância me intriga.

É claro que a maioria desses espécimes nunca participou do debate público e sempre compartilhou suas opiniões em seu microcosmo ou através do pretenso anonimato da internet. Como não conviveu com a diferença e se sente quentinho na bolha de amigos montada através do algoritmo das redes sociais, acha que o mundo pensa como ela. É um choque quando descobre que não.

Tenho um fascínio doido por esse pessoal. Gostaria de saber mais sobre eles, entender seus sentimentos. Adoraria ligar a TV e ver o Sérgio Chapelin anunciando: "Você sabe quem é o fascista brasileiro? Onde vive? O que come? Como se reproduz? Pela primeira vez, uma equipe de TV registrou o ritual secreto de acasalamento de fascistas em seu habitat natural. E especialistas apontam: parece que não, mas fascismo tem cura. Hoje, no Globo Repórter".

Gosto quando as pessoas perdem a vergonha de mostrar quem são. Quanto mais transparência, melhor. Mas quem sai do armário tem que aprender que o jogo tem regras. Ou seja, sem bater, cuspir ou puxar o cabelo do amiguinho e da amiguinha. Muito menos comer seu cérebro.

Na dúvida, diante de ameaças, é chamar a polícia, pois ela existe para isso. Torcendo, é claro, para que a polícia não queira bater em você também.

Sou contra a censura prévia por princípio. Mas desconfio que muito dodói que partiu para a ignorância na rua se inspirou ou foi empoderado pelo que viu, leu ou ouviu a vida toda na mídia. Só uma ostra em coma com problemas prévios de cognição acha que jornalistas e colunistas não ajudam a entornar esse caldo.

Não somos nós que vamos a público cometer agressões. Da mesma forma que não é a mão de pastores ou deputados que seguram a faca, o revólver ou a lâmpada fluorescente que atacam gays e lésbicas. Mas somos nós que, muitas vezes, na busca por audiência ou para encaixar um fato em nossa visão de mundo, tornamos a agressão banal, quase uma necessidade para restabelecer a ordem das coisas.

Então, apesar de não defender a censura prévia, sou a favor de que disseminadores de ódio sejam devidamente responsabilizados pelos seus atos. Sejam eles de qualquer matriz política ou partidária.

Mas não pense que idiotice é monopólio de período eleitoral. As coisas estão exaltadas no dia a dia também. Eu havia elencado algumas dicas do que fazer nesses casos, tempos atrás, que atualizo aqui:

Se beijar alguém do mesmo sexo na rua, pode levar porrada.
Dica: detectando a presença de fundamentalistas religiosos ou de pessoas machistas, preconceituosas e/ou homofóbicas (que são muitas por aqui, infelizmente), evite proximidade física. Se for abordado, diga que já pagou o dízimo neste mês. Ou visualize uma rota de fuga.

Se criticar o discurso de ódio de um ruralista, pode levar porrada.
Dica: Não visite o Congresso Nacional em dia de votação de projeto de interesse da bancada ruralista caso não esteja com a carteirinha de vacinas em dia. Para saber o tipo de imunização, além da anti-rábica, clique aqui.

Se você é jornalista no lugar certo, na hora certa, pode levar porrada.
Dica: Aí, não tem muito jeito. Se estiver fazendo o seu trabalho em uma manifestação, provavelmente irá apanhar. Mantenha no bolso um papelzinho com seu tipo sanguíneo e contatos telefônicos em caso de emergência.

Se reclamar que alguém parou sobre a ciclovia ou a faixa de pedestres, pode levar porrada.
Dica: A prioridade do uso do espaço público é dos carros. Pedestres e ciclistas são considerados um incômodo detalhe, mas que serão resolvidos em breve. E como qualquer celerado pode ter uma arma, cuidado ao reclamar se estiver sem colete à prova de bala.

Se você estiver em uma festa e alguém te agarrar à força, não reclame, pode levar porrada.
Dica: Jovens levam a sério a máxima de que mulher na rua à noite está à disposição. Normalmente, andam em bandos, seja por questões de insegurança pessoal ou necessidade de reafirmar a masculinidade, esbanjando testosterona. Ao ver um tipo desses, não olhe para o lado.

Pensando melhor, de repente, os fascistas é que estão certos.

A porrada é o nosso melhor argumento. É o que nos define. O que realmente nos une e nos faz brasileiros.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.