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Leonardo Sakamoto

O bolivarianismo é coisa do demônio. Li na internet, então é verdade

Leonardo Sakamoto

04/11/2014 18h11

É fascinante como algumas pessoas repetem palavras que ouviram sem se dar conta de que erram feio, erram rude o seu significado.

Isso é muito comum no mundo corporativo, por exemplo, com engravatados que gostam de "performar" ou "operacionalizar", principalmente no gerúndio.

Talvez achem bonito quando vêem aquele bando de letrinhas voluptuosas fluindo para fora de algumas úmidas e honoráveis bocas. Ou talvez usem porque tá na moda – papagaio ouviu, papagaio repetiu.

O mesmo ocorre no debate público. Historicamente, "comunismo" e "socialismo" sempre foram duas delas. Particularmente, duvido que a galera que posta em CAPS LOCK nas caixas de comentários de blogs consiga explicar, sem a ajuda do Google, quais as virtudes e os defeitos de cada um. O mesmo vale para outras palavras como "capitalismo" e "liberalismo". Não importa o que signifiquem, o que vale é como a turba as rebatizou.

Tendo isso em vista, comunismo passou a significar Tinhoso, Tranca-Rua, Capiroto, O-Que-Não-Se-Diz-O-Nome. Capitalismo, por sua vez, é Satanás, O Maldito, O Sem Sombra, Diabolô.

Agora, a palavra do momento é bolivarianismo.

E o que é bolivarianismo? Um tipo de vício alimentar baseado em pequenos brioches vegetarianos vendidos em padarias gourmet? Ou alguma doença que incha o pé quando se consome carne de frango cru? Quiçá uma nova corrente literária que exalta, em verso e prosa, a beleza do ovo poché?

Por favor, por favor. Longe de mim estar aqui para defender o bolivarianismo.

Mas já que muitas pessoas são tão nonsenses que abraçam loucamente o suposto significado de uma palavra sem checá-lo junto a fontes idôneas e com credibilidade, sou obrigado a resgatar uma história dadaísta aqui já discutida.

Tenho um Chávez de brinquedo e um boneco do Chaves.

Se você aperta o botão nas costas do ex-presidente, vestido com botas e uma farda verde-oliva, ele repete três vezes um discurso. Dá mais ou menos um minuto de fala, que começa com "Eu cheguei aqui para fazer todo o humanamente possível…" No começo, é engraçado. Mas, depois, vira um porre.

Já o outro revela-se, pela etiqueta, um imigrante chinês. Provavelmente filho de mãe vietnamita e pai tailandês, nascido em alguma oficina de costura escura, úmida, com muito trabalho e pouca comida, que conseguiu entrar no México por interesses comerciais. Não faz nada, não pisca, não pula, não fala. Mesmo assim, é simpático – por ser de pelúcia.

Enfim, fofo na sua natureza de fofura.

Flagrei os dois em momento de confraternização, observados com desconfiança por um ornitorrinco.

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O ornitorrinco é um rapaz que tem patas e bico de pato, rabo de castor, bota ovo e é mamífero. Uma daquelas coisas esquisitas na escala da evolução que enche Darwin de orgulho. Darwin, que é a alegria dos positivistas de plantão. Mas causa um calafrio de dor e luxúria em alguns religiosos. Menos no Papa Francisco.

O bicho é usado pelo sociólogo Francisco de Oliveira para explicar o Brasil, que não seria uma coisa nem outra na escala do desenvolvimento – perde-se entre a riqueza e a miséria ao ser um importante ator na economia global e, ao mesmo tempo, um dos países mais desiguais do mundo. O mesmo valeria, com adaptações, para outros países de nossa América Latina.

E falando em pelúcia, lembro que um artista plástico, anos atrás, fez uma exposição com vários bonecos do Lula. Fez tanto sucesso que muita gente de renome quis um. Virou hype ter um Lula "just for fun" para chamar de seu. Se não me falha a memória até Fernando Henrique ganhou um. Se dormia abraçado com ele, sinceramente não sei. Nem quero imaginar.

Um amigo – que não gosta de pelúcia – tem, ao lado do monitor de seu computador, dois bonecos de chumbo: um do Che e outro do Fidel. Os dois são bem duros, pesados, resistentes, machucam até, o que diz bastante sobre as brincadeiras de antigamente. Eles caem no chão a toda a hora. Tão lá. Descascados, mas tão. Hoje em dia, as coisas não são feitas para durar. Tudo quebra ou rasga, como o Chávez ou o Chaves.

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Recentemente, ele trouxe um Batman de plástico, bombadão, a fim de acompanhar os outros dois.

Ainda guardo comigo uma foca de pelúcia que ganhei há anos. "Foca", no jargão jornalístico, é o repórter de início de carreira, pilhado, mas que faz bastante besteira também. Tive que tirar de lá porque a foca sofria bullying dos filhos de meus amigos que visitam minha humilde choupana. Nessa, perdeu os bigodes.

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Ah, e tive preguiça. De pelúcia.

A preguiça não se interessa pela dignidade dos outros pois, afinal de contas, é feita de pelúcia. Muito menos por debates políticos de qualidade.

Mas adora um notebook. E redes sociais. E memes.

Coincidentemente, quando li o comentário de um leitor de que uma certa ditadura comunogayzistabolivarianista estaria chegando, um vento forte veio e derrubou o Chávez. O ornitorrinco não se importou. E a preguiça, como era de se esperar, ficou só olhando.

Esses posts (aparentemente) sem sentido têm sempre uma moral da história. Então, lá vai: Largue a preguiça que existe em você. Informe-se. Não seja uma pelúcia nas mãos dos outros.

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Orgulho de ser brasileiro. Mas nem sempre.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.