Topo

Leonardo Sakamoto

Estado segue produzindo mortos e desaparecidos políticos, diz comissão

Leonardo Sakamoto

06/11/2014 08h00

A continuidade da violência de Estado por meio da manutenção de estruturas repressivas herdadas da ditadura impõe a criação de uma comissão especial sobre mortos e desaparecidos vítimas da violência de Estado do período democrático. Com isso, espera-se garantir às vítimas da violência do Estado democrático os mesmos direitos e reparações que cabem às vítimas da ditadura civil-militar.

Essa proposta faz parte de um documento que deve ser entregue pela presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Eugênia Gonzaga, ao coordenador da Comissão Nacional da Verdade, Pedro de Abreu Dallari, nesta quinta (6). Criada em 1995, a CEMDP tem como objetivos principais reconhecer vítimas da ditadura, buscar e identificar desaparecidos políticos e atuar por justiça e reparação.

O documento, ao qual este blog teve acesso, quer dar subsídios para o capítulo do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, a ser apresentado no próximo mês, que fará recomendações a serem cumpridas pelo Estado brasileiro.

De acordo com o documento, "o conceito de 'desaparecido político' vem sendo interpretado muito estreitamente". Não compreenderia, por exemplo, desaparecidos que não possuíam envolvimento direto com movimentos ou organizações de resistência à ditadura, como indígenas, camponeses, minorias étnicas e sexuais, entre outras.

Ao mesmo tempo, o conceito estaria sendo utilizado apenas para designar desaparecimentos ocorridos até a promulgação da Constituição de 1988. Para a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, esse recorte pressupõe que houve uma ruptura radical entre a ditadura e a democracia e que a transição "lenta, gradual e segura" ocorreu com êxito.

"Contra essa percepção, é preciso insistir que a arquitetura da segurança pública existente atualmente é legado da ditadura civil-militar brasileira. Referimo-nos, aqui, à estrutura de organização das forças de segurança; à formação dos policiais nas escolas e quartéis; ao uso sistemático da tortura como meio de se obter informação; aos índices assustadores de execuções sumárias cometidas pelas polícias brasileiras e encobertas por laudos necroscópicos falsos e pela máscara jurídica do 'auto de resistência seguido de morte'; à permanência do 'poder desaparecedor', responsável pelo aumento do número de desconhecidos sepultados em valas comuns – ou em valas clandestinas", afirma o documento.

Segundo a Comissão Especial, hoje, as principais vítimas da violência de Estado não são militantes de organizações políticas clandestinas, mas jovens negros e moradores das periferias. E além do abandono social a que estão condenados esses grupos, há o desamparo institucional de suas famílias (que não conseguem conhecer a verdade sobre o que aconteceu a seus parentes) e a impunidade dos algozes.

Entre as outras sugestões encaminhadas à Comissão Nacional da Verdade, destaca-se:

– Atualizar os dados sobre vítimas fatais da ditadura, incorporando setores até agora negligenciados ou pouco contemplados, como pessoas em situação de rua, presidiários, camponeses, operários, indígenas e outras minorias étnicas, religiosas e de gênero;

– Criar a Secretaria Nacional de Justiça de Transição, com orçamento, estrutura e recursos humanos próprios, para desenvolver, implementar e monitorar políticas a fim de enfrentar o legado de violência da ditadura e contribuir com a consolidação da democracia no Brasil;

– Ampliar a competência da própria Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos para que o encerramento do período legal das atividades da CNV não represente o término da apuração das violações de direitos humanos durante a ditadura. Isso incluiria a garantia de poder para requisitar informações e documentos, ainda que sigilosos, de órgãos públicos, convocar entrevistas, determinar a realização de perícias e diligências para coleta de dados, promover audiências públicas. Para tanto, sugerem a garantia de melhores condições materiais e mais recursos humanos para a CEMDP.

Criada em 2011 e instituída em maio de 2012, a Comissão Nacional da Verdade tem prazo até 16 de dezembro deste ano para o encerramento dos trabalhos, incluindo a apresentação de relatório contendo as atividades realizadas, os fatos examinados, as conclusões e recomendações sobre as graves violações de direitos humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.