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Leonardo Sakamoto

Nenhum partido é dono do pensamento de esquerda (seja lá isso o que for)

Leonardo Sakamoto

13/11/2014 12h03

Somos educados desde cedo para tomar partido na luta do bem contra o mal e não para entender a pluralidade de pontos de vista ou mesmo o fato de que "bem" e "mal" são construções que atendem a interesses de determinados grupos sociais. Não são absolutos, mas precisam ser enxergados à luz de seu contexto.

É tão raso quando alguém atribui a origem de todos os males a um único partido, seja PT, PSDB, Rede e por aí vai, quando sabemos que as coisas são bem mais complexas. Ou quando se institucionaliza um posicionamento político na forma de uma filiação partidária.

Nas últimas semanas, recebi uma série de mensagens de leitores (em corrente dúvida existencial) que defenderam, em sua argumentação simplista, que o PT é a esquerda e o PSDB, a direita.

Eu tinha trazido esta discussão para o blog no início do ano, mas acho válido resgatá-la e atualizá-la por conta do rescaldo eleitoral.

Fico fascinado quando um leitor identifica um perfil de esquerda (desculpe, mas na falta de uma categoria melhor para agrupar essa massa disforme vai essa palavra desgastada e mal-entendida mesmo) em minha matriz de intepretação do mundo e, ato reflexo, me chama de "petista".

Como se todo o petista fosse obrigatoriamente de esquerda (nada mais equivocado) e como se toda esquerda não fosse, em si, muito maior que um partido em questão.

Isso lembra o início do século 20, quando imigrantes libaneses e sírios eram chamados, por aqui, indiscriminadamente de turcos por causa do passaporte emitido pelo Império Otomano. O que, claramente, deixava muitos libaneses e sírios indignados.

Revolta expressa de forma magistral pelo turco Rachid, da novela Renascer? "Nós não turco, nós li-ba-nês!"

Então, para ser bem didático: nós não petista, nós de es-quer-da!

Concordo com ações adotadas pelo governo federal quando elas vão ao encontro de um ponto de vista sobre qual deve ser a real função do Estado (como a libertação de escravos e a implementação de instrumentos para punir economicamente quem se utiliza desse crime), pondero as ações importantes mas que precisam de melhorias para efetivarem todas as suas possibilidades (como o próprio Bolsa Família) e me esgoelo de críticas quando o governo vai contra o que acredito como princípio – como a relação bizarra com antigos coronéis da política nacional e a forma com a qual estão sendo levadas a cabo grandes obras de engenharia, como a usina hidrelétrica de Belo Monte, passando por cima de muita gente.

Fiz uma contagem e vejam só! Este escriba, sem partido, tem mais textos criticando políticas do PT do que concordando com elas.

Mas odiadores vão odiar. É o papel deles.

Mesmo um partido não é algo monolítico e sim dividido em correntes. E há divergências entre base e cúpula ou quem trabalha no governo e quem executa funções partidárias. Há pessoas no PT que estão possessas com atitudes conservadoras do governo, outras vivenciam orgasmos com elas.

Tal qual um sinal colorido captado por uma televisão em preto e branco, não raro encontramos gente que, diante de uma profusão de cores e tonalidades, forçam o mundo a perder toda sua riqueza e se ajustar a uma realidade com menos graça. Não existe o amarelo, verde e o vermelho, o que reina são tons de cinza. E, ainda assim, menos de 50 deles.

Não raro, a pessoa nem poderia ser cobrada por isso. Como exigir que consiga verbalizar a distinção de cores se elas nunca lhe foram devidamente apresentadas? Se durante toda a sua vida, tudo e todos fizeram-na acreditar que as opções eram apenas duas?

Cultura política deveria ser algo melhor fomentado, desde cedo, via estrutura formal de educação. Mas também através de nosso trabalho como jornalistas, evitando simplificações políticas, onde há complexidade.

Animar o debate público de qualidade para mostrar que há matizes e zonas cinzentas mesmo dentro de grupos que parecem coesos é fundamental. Não fazendo picuinhas, mas analisando o que significa cada discurso.

Ajudaria se todo mundo lesse os textos até o final ao invés de só passar o olho pelos títulos e fizesse um esforço para sua interpretação.

Mas como atravessamos a adolescência da internet, em que as pessoas estão com os hormônios à flor da pele, vale uma certa quantidade de resignação e de torcida para que a fase de descobertas pessoais passe rápido.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.