Governo muda Previdência para economizar e não ataca origem dos problemas
O governo federal anunciou uma série de regras para impor limites à concessão de benefícios previdenciários como seguro-desemprego, auxílio doença, pensão por morte, seguro defeso e o abono salarial. Como as mudanças, que afetam apenas os novos pedidos, foram baixadas por Medida Provisória, elas passam a valer sem necessidade de autorização do Congresso mas, posteriormente, serão ratificadas ou não por ele. A oposição e algumas centrais sindicais já prometeram bater bumbo.
O problema desse pacote é que ao tentar atacar distorções de uma relação que envolve Gaspar e Baltazar, o governo vai criar problemas para a vida de Melquior – que não tinha nada a ver com a história – e sem resolver as causas do problema original.
As ações anunciadas, nesta segunda (29), atacam o problema pelo lado do orçamento do Estado (que este se arrastando, feito zumbi sem pernas, para fechar o ano), mas não age de forma estrutural nos elementos que criam essas distorções. Como sempre, o governo federal, em matéria trabalhista, enxuga gelo.
O Brasil teve uma queda contínua do desemprego nos últimos anos. Se utilizarmos como referências os dados de outros países no momento de aquecimento do mercado de trabalho, poderemos notar que, quando isso acontece, há também uma redução na quantidade de solicitações de seguro-desemprego. Mas, por aqui, esse número aumentou consideravelmente.
Boa parte dos empregos que foram e estão sendo criados são de baixa qualidade, frágeis, envolvendo pouca qualificação profissional e organização precária dos trabalhadores.
E, aproveitando-se disso, o sistema tem usado as regras atuais para a concessão de benefícios a fim de ganhar com isso.
É claro que regras e procedimentos novos são necessários porque há fraude, malandragem e até assédio ou associações espúrias entre alguns empresários (Gaspar) e trabalhadores (Baltazar) para que a pessoa trabalhe uma parte do ano sob registro e a outra parte sem, com o seguro-desemprego incorporado ao salário nesse "momento informal". Isso tira a pressão salarial da costas do empregador e joga para a coletividade (Previdência). Esses "acordos" ocorrem em vários setores, como o de comércio e o de serviços.
Portanto, mais importante do que alterar essas regras e procedimentos é mudar o coração da concepção do mercado de trabalho que é o fato gerador dessa situação precária. E isso o governo federal não faz.
Outro exemplo, a questão do auxílio doença. O trabalho de baixa produtividade gera intensificação e, consequentemente, aumento nas notificações de doenças. Há, aliás, muitos trabalhadores que se protegem do ambiente de trabalho extremamente desgastante em determinadores setores em que a moagem de gente corre solta, como o dos frigoríficos, ficando doentes. É o escape do corpo e da cabeça.
Quando se impõe que as empresas, como os frigoríficos, passem a pagar 30 dias e não apenas 15 do salário do trabalhador antes que o INSS arque com a conta, como foi proposto, aposto meu ornitorrinco de pelúcia que haverá empresas criando entraves para a concessão de afastamentos.
Ou seja, quando você cria condicionalidades em um mercado de trabalho hostil, cria também barreiras para quem precisa realmente do benefício – como é o caso do Melquior já citado. E o Estado, hoje, que não tem capacidade de separar o joio do trigo, faz essa mudança e joga as incertezas sobre o trabalhador.
Há muito atestado falso? Claro, existe um comércio louco desses documentos em qualquer cidade brasileira. Deve-se regular melhor as condições de acesso aos benefícios que não devem ser pensados como a Festa da Goiaba, mas alcançáveis em determinadas situações, sob o risco de não termos caixa para pagar todos os que precisam deles no futuro.
Contudo a "moralização" do benefício deve vir precedida de garantias para que uns não paguem pelos erros dos outros e nem pareça, como está parecendo, que a única preocupação do governo Dilma é fazer caixa.
Outro caso em que a canetada presidencial afeta Melquior é o setor sucroalcooleiro. Apesar de já operar praticamente o ano inteiro, parte das usinas em São Paulo emprega em abril e desemprega em novembro, sob a justificativa da safra. Há uma profunda discussão no âmbito da Justiça do Trabalho de que as usinas deveriam manter o trabalhador contratado o ano todo, uma vez que, todos os anos, elas fazem o mesmo procedimento com o mesmo trabalhador. E jogam esses meses em aberto para ele viver com base no seguro-desemprego quando, na prática, é empregado da usina há muito tempo.
Isso não é ilegal. Muito menos associação espúria para fraudar a Previdência. Mas é um modelo de negócio em que o cofres público e o trabalhador pagam o pato pela "sazonalidade".
Com a mudança das regras, o sujeito que já colhe cana há anos não deve sofrer com as mudanças, porque o terceiro pedido de seguro desemprego se mantém com a condicionalidade de seis meses trabalhados de acordo com as novas regras.
Mas para o filho dele de 18 anos, que começa a trabalhar na próxima safra, como é que será se a condicionalidade passou para 18 meses de trabalho? Espero que o governo tenha uma saída para isso, porque vai afetar muita gente.
Essa situação deveria estar resolvida há tempos, mas nos furtamos a regular determinadas relações de trabalho e, com isso, a população vai ficando sem proteção.
A sociedade mudou, a estrutura do mercado de trabalho mudou. Não há receita mágica para essas mudanças estruturais, que deveriam vir antes das medidas para salvar o caixa público e o pescoço do governo. Alguns pontos que poderiam ser um começo: melhorar a regulação do mercado de trabalho (aliás, regulação é algo péssimo por aqui), desenvolver a qualificação profissional de forma a gerar empregos mais sólidos, melhorar o sistema de ingresso no mercado de trabalho (o que inclui dar efetividade ao serviço nacional de intermediação de mão de obra, pois o que existe em boa parte do país é o bom e velho "gato" intermediando) e, é claro, a redução na jornada de trabalho – pleiteada pelos trabalhadores e empurrada pelo governo com a barriga e com medo há anos
Por fim, um comentário: o novo ministro da Fazenda Joaquim Levy (fala a verdade, se alguém te falasse isso anos atrás, você diria que é pegadinha do Serginho Mallandro, né?), elogiou o projeto de lei que trata da terceirização e está tramitando no Congresso Nacional. Vão ser quatro anos muitos longos…
É claro que a terceirização precisa de regras melhores no Brasil, porque muita gente fica ao relento. Mas a aprovação da terceirização da atividade-fim do jeito que propõe o projeto, dando a possibilidade de contratar por PJ praticamente qualquer função de uma empresa, pode causar sérios danos à qualidade de vida dos trabalhadores e trabalhadoras do país.
Como disse um sábio juiz do trabalho com o qual conversei, "pergunta se os defensores desse novo projeto topam a terceirização da atividade-fim acrescentando a garantia de contrato coletivo de âmbito nacional para manter a responsabilidade do setor econômico para os subcontratados. E sai de perto para não apanhar".
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