Topo

Leonardo Sakamoto

O que a luta de Timor Leste contra a Indonésia pode ensinar ao Brasil

Leonardo Sakamoto

18/01/2015 11h47

No dia 30 de agosto de 1999, 78,5% da população do Timor Leste, uma metade de ilha entre o Índico e o Pacífico, de colonização portuguesa, votou a favor de sua autodeterminação e contra a integração definitiva com a Indonésia – o auge de 24 anos de resistência à dominação violenta e guerra pela independência.

A ocupação, mantida à força pela Indonésia (na época, sob a ditadura de Suharto) causou um dos maiores genocídios do século 20, com mais de 30% de timorenses mortos direta ou indiretamente pela invasão – tendo como base o número de habitantes em 1975. Uma onda de violência tomou conta do país próximo à data desse plebiscito, quando grupos paramilitares armados por indonésios espalharam o terror entre os timorenses e mataram outras milhares de pessoas.

A gente pobre daquela esquina do mundo enfrentou por um quarto de século um dos maiores exércitos do planeta sem o apoio de quase ninguém e venceu.

Estive por lá, em agosto e setembro de 1998, para fazer uma reportagem sobre a luta do povo maubere pela independência. Depois, defendi um mestrado sobre as causas do sucesso da resistência.

E os habitantes da ilha achavam que os brasileiros se preocupavam com o destino de Timor. Mal sabiam eles que a maioria de nós nem sabia que Timor existia.

O Brasil – maior país de língua portuguesa – teve uma atuação pífia, não condizente com um país que sempre almejou uma projeção maior no cenário internacional. Em parte por conta do cenário geopolítico da Guerra Fria, em parte por medo de perder uma parceria comercial que nem era significativa.

Apesar da participação da sociedade civil (como o grupo Clamor por Timor) e de alguns políticos, na prática, o que o Brasil deu ao Timor foi um apoio moral, um tapinha nas costas. Nunca acreditou realmente na independência do país e, apesar de ter uma posição favorável a ele nas discussões das Nações Unidas, não agiu fortemente no sentido de pressionar a Indonésia.

Decidi resgatar um pouco a história de Timor depois do caso do brasileiro executado, na tarde deste sábado (horário de Brasília), após ser condenado por tráfico de drogas, por uma série de razões.

(Quem quiser saber minha opinião sobre o fato de governos manterem uma instituição bizarra, decrépita, indigna e tosca como a pena de morte, aproximando-se de assassinos e bandidos, pode ler o texto que publiquei aqui ontem.)

Leia:
Ao pedir pena de morte para tráfico de drogas, matamos junto a civilização

Primeiro, porque gostaria que o Estado brasileiro se declarasse mais fortemente em casos de violações aos direitos humanos em outros países da mesma forma que se posicionou contra a execução do brasileiro. O ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, disse que o fuzilamento de Marco Archer traz uma sombra na relação entre os dois países. Concordo. Mas também foi uma vergonha a ação insuficiente nas décadas de 70, 80 e 90 com o caso timorense.

E a lista de locais com casos de violações é longa e não poupa ninguém: Cuba, Estados Unidos, China, França, Inglaterra, Venezuela, Irã, Coreia do Norte, Rússia, Angola, Paquistão e por aí vai. Cada um com seu jeito peculiar de atacar a dignidade do seu semelhante em uma área diferente dos direitos humanos.

O Brasil também? Claro! E por várias razões merece ser criticado. Por exemplo, o Estado brasileiro pensa que um retrocesso como a suspensão da "lista suja" do trabalho escravo (que traz ao público quem usou escravos no país), decidida de forma liminar pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, não vai levar o país a ser questionado internacionalmente no futuro?

Segundo, porque neste momento em que vivemos uma polarização burra no Brasil, que fortalece apenas os extremistas em detrimento ao diálogo, palavras de Xanana Gusmão, herói pela independência timorense e hoje primeiro ministro, vêm bem a calhar.

Entrevistei-o em duas ocasiões – a primeira na penitenciária de Cipinang, em Jacarta, capital da Indonésia, quando cumpria pena por tentar fazer do Timor um país livre, e a outra em São Paulo, durante sua visita ao Brasil, em 2002. Otimista quanto às diferenças políticas em seu país, que chegaram a causar confrontos civis antes da invasão indonésia, frisava que elas não deveriam ser ignoradas, mas eram levadas em conta para o desenvolvimento do país:

"Pergunta-me se superamos as diferenças. Permita-me que responda que espero que não. Este momento é o momento da vivência das diferenças. É na diferença que vamos crescer e amadurecer. É na diferença que vamos aprender o respeito democrático e enriquecer o nosso debate e as opções tão difíceis que temos de fazer nestes primeiros anos de independência. No que é fundamental e estratégico para o futuro do país, as diferentes forças políticas e da sociedade civil estão em acordo. Creio que este acordo é essencial… No resto, a diferença não só é desejável como saudável."

Terceira razão para resgatar o caso timorense: estamos resumindo de forma simplista os conflitos contemporâneos para "choques civilizacionais", para a alegria do polêmico economista Samuel Huntington. E é preciso refletir sobre isso.

Diante de uma situação de terra arrasada, muitos se perguntaram na época da independência se o Estado timorense conseguiria se manter frente aos desafios econômicos, sociais e políticos sem a tutela das Nações Unidas – que enviou uma força de paz e de estabilização. Vieram graves crises, atentados, disputas internas.

Mas engana-se quem reduz os conflitos em Timor a disputas étnicas ou religiosas e esquece o difícil processo político que tem sido a fundação do Estado timorense sob a miséria que atinge a maioria da população.

Um dos países mais pobres do mundo, entregue à própria sorte durante a ocupação indonésia e transformado em ícone internacional da liberdade, hoje, passado algum tempo da comoção pela independência, foi bastante deixado de lado na pauta da comunidade internacional. Justamente quando vive sua fase mais delicada.

Boa parte do povo maubere possui poucas perspectivas de um futuro melhor, os sistemas de proteção social estão apenas começando e faltam recursos para investimento. Além disso, o país é dependente do petróleo (o mar de Timor possui uma das maiores reservas do mundo), mas os recursos oriundos dele ainda demoram para chegar a toda a população. Em suma, o conflito não é entre as diversas etnias e grupos políticos que convivem nesta meia ilha, mas a questão econômica e de sobrevivência coletiva: como garantir qualidade de vida para todos?

A conjuntura internacional do pós Guerra Fria, com a diminuição da importância estratégica da Indonésia para os Estados Unidos, e a crise econômica do Sudeste Asiático no final da década contribuem um pouco para explicar o sucesso da resistência através do enfraquecimento do governo do então ditador indonésio Suharto (que também havia invadido a parte ocidental da Ilha de Papua Nova Guiné e manteve uma política de exploração de Java, a ilha onde fica capital, sobre as províncias de seu país). Porém, o maior peso internacional veio dos grupos de pressão, munidos de informações fornecidas pela Resistência Timorense, que fizeram campanha para que seus governos interviessem junto à Indonésia por uma solução para o caso timorense.

Daí a quarta e última razão: valorizar a participação – coisa que aqui tem sido recebida a bombas de gás lacrimogênio e balas e borracha. Há uma geração inteira, filhos da ocupação, que lutou para obter a independência e, com isso, desenvolveu uma forte cultura de participação política. Esse capital acumulado tem sido muito útil para enfrentar esses desafios dos primeiros anos de liberdade e assegurar, enfim, a consolidação da democracia. Mesmo que conflitos e confrontos políticos continuem existindo.

A gente pobre daquela esquina do mundo enfrentou por um quarto de século um dos maiores exércitos do planeta sem o apoio de quase ninguém e venceu. É possível tirar algumas lições de lá para a nossa realidade.

A periferia do mundo enfrenta um período decisivo. Se puder se unir em torno de um mesmo inimigo – a pobreza, suas causas e causadores – conseguirá também se libertar e ser realmente independente. Para isso, olhar mais para o lado e não só para cima, ajuda.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.