Dengue: Quem consegue enganar a morte por mais tempo?
Devido ao jornalismo, peguei muita pereba nesta vida. Dengue foi uma, no interior da Paraíba, doída – sem manchas, pelo menos. De malária, foram duas, do tipo falciparum, uma em Timor Leste e outra em Angola, durante coberturas. Teve uma mononucleose do Punjab paquistanês. Dizem que é chamada de "doença do beijo", pela forma de transmissão – a explicação que trouxe para casa (e que colou, pois Alah é grande) foi de que em muitos vilarejos, durante as refeições, o uso do copo era coletivo. Outra vez, alguma bactéria maluca se alojou perto do meu coração, gerando uma pericardite – o que me deixou uma semana internado, recebendo boa comida. Foi um período tranquilo, sem muita gente ligando, cobrando textos ou dívidas.
Viroses e afins não entraram na lista, mesmo que ferozes, porque aí teríamos uma capivara e não um post. Aliás, a virose é a "pescada" da medicina. É aquela coisa genérica, que muitas vezes nem o médico sabe o que é mas, pelos sintomas, recebe o tratamento básico – água, alimentação leve, um analgésico e repouso.
Não digo isso com orgulho, pelo contrário. Jornalistas da antiga contam que mediam-se carreiras pelo número de doenças tropicais contraídas. Mas o tempo passou e a régua foi para a quantidade de textos censurados pela Gloriosa, depois para processos na Justiça até chegar ao nonsense do número de retuitadas, compartilhamentos e likes.
Como defendo neste espaço sempre que posso, somos exemplos vivos de que a humanidade conseguiu dar um nó na seleção natural. Se deixassem a natureza seguir seu curso, seres como estariam naturalmente fadados a ser peça empalhada de museu. Bateríamos as botas antes de atender ao divino chamado de multiplicar – ou, no caso dos cardíacos, no momento de cumprir esse chamado. Hoje, não mais. Os fortes é que sobrevivem? Esqueça. Os remendados é que herdarão a Terra. Nossa vantagem competitiva? Ter sempre à mão uma boa despensa com medicamentos, além de médicos competentes.
Digo parcela da população porque tenho acesso a remédios e tratamentos de ponta, que funcionam e têm poucos efeitos colaterais, sem fila e na hora em que preciso.
Sucesso garantido, aliás, graças a exigentes testes realizados à exaustão pelas maiores indústrias farmacêuticas do mundo em milhares de "voluntários" de classes sociais mais baixas.
Milhões de pessoas morrem anualmente no mundo por causa de dengue e malária e outros tantos pegam essas doenças – a quase totalidade oriundos de países ou regiões pobres do planeta. A relação de casos letais/investimento em cura é maior nas doenças que acometem a parte rica da população do que a parte pobre. A pesquisa para a busca da cura do câncer recebe muito mais que pesquisas para doenças causadas por parasitas que afetam bilhões.
E quando uma pessoa que tem acesso a recursos privados de saúde, como eu ou o doutor Drauzio Varella (que pegou febre amarela e narrou a experiência no belo livro "O Médico Doente"), fica ruim, há chance maior de cura do que alguém que depende de si mesmo, do poder público e de suas filas.
Parte da população vive no século 21 da medicina, enquanto outros ainda engatinham pela Idade Média das esperas em hospitais, dos remédios inacessíveis, da falta de saneamento básico, da inexistência de ações preventivas e, mais recentemente, da incapacidade de governos de entenderem que as mudanças climáticas vão aumentar os focos de doenças tropicais.
Com a escassez hídrica causada pelo vácuo de ações públicas em São Paulo e no Rio, o desespero, principalmente em casas humildes que não têm nem caixa d'água, está levando ao armazenamento em baldes e barris e, consequentemente, à proliferação de criadouros de mosquitos. Pois, na periferia, o racionamento pesado já existe há tempos.
Enfim, quem consegue jogar xadrez com a Dona Morte e enganá-la por mais tempo somos nós, os mais ricos, que possuem os meios para tanto. Os mais pobres, por mais que tenham força de vontade e queiram continuar vivendo, não necessariamente conseguem a façanha.
Vão apenas tocando como podem, apesar de tudo e de todos, ajudando com seu trabalho e, algumas vezes, como cobaias, os que ganharam na loteria da vida a terem uma existência mais feliz.
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