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Leonardo Sakamoto

O "cidadão de bem" vai à desforra. Mas, cuidado, pois ele cospe

Leonardo Sakamoto

25/02/2015 13h43

Regras de convivência social existem única e exclusivamente com o intuito de fazer com que homens e mulheres de bem fiquem calados diante da injustiça, da exploração e do cinismo. Em outras palavras, que poderosos possam continuar a passar suas peludas mãos em nossas inocentes bundas.

(É ridículo ter que explicar, mas cuidado: texto com alta dose de ironia.)

Por isso, apoio o fato do ex-ministro da Fazenda Guido Mantega ter sido hostilizado no hospital Albert Einstein, em São Paulo.

E daí que ele estava acompanhando a esposa que está doente? Conduziu a economia, tem uma parcela de responsabilidade pela situação de crise em que nos encontramos e, por isso, merece ser agredido em qualquer lugar.

Algumas pessoas dizem que devemos respeitar a privacidade em certos momentos. Discordo. Você não está cansado de ter que medir as palavras diante da sua raiva? E as pessoas respeitam a sua raiva? Por que sua raiva é menos importante que a privacidade delas? Já chega! Basta! Se a Justiça não faz Justiça, faça você mesmo.

Viu o governador ou o prefeito no mesmo dentista que você? Não está cansado de seus impostos irem para a corrupção? Xingue-os. Xingue a mãe deles.

Quem é aquele deputado acha que é para frequentar a mesma igreja que você? Vá até ele e dê um soco no meio da fuça. Depois, quando estiver no chão, pise na sua cabeça. Deus concordará com isso.

Mas por que parar no poder público? Não está deprimido de saber que o dono da empresa na qual trabalha ganha horrores enquanto você recebe um salário de fome? Aproveite o velório do filho dele e leve faixas para o cemitério, dizendo que ele será o próximo.

E porque só poderosos? E aquele vizinho gay? Você nunca o viu beijar a outra bicha que mora com ele, mas você tem certeza que faz isso. E coisa pior. Será que o vagabundo pensa que seus filhos podem, um dia, ver aquela nojeira e, contaminados por essa excrescência, virarem bichas também? Entre na casa dele, depois amarre-os e dê 50 chibatadas preventivas.

Ao inferno com a privacidade! Toda mulher que já defendeu algum dia o direito ao aborto deve ser monitorada por câmeras 24 horas por dia, sete dias por semana. Pois há a chance dela transar e ficar grávida. E, ficando, abortar. A privacidade dela vale menos que o direito do embrião à vida. Se ela não aceitar, que seja presa.

Afinal de contas, o cidadão de bem está cansado de tudo isso que está aí. E chegou a hora da desforra. E se o mano a mano ficar difícil, dá para contratar um pessoal que faz um serviço limpo por um preço ótimo.

Vigiar para ser livre. Ser livre para punir. Punir para fazer Justiça.

E não discorde. Ou está comigo ou está contra mim.

***

Não tenho nenhum apreço especial pelo ex-ministro da Fazenda e creio que ele tem sim parcela de responsabilidade pela atual conjuntura econômica. Mas, pessoalmente, sugiro que ele use o episódio para tirar algo de bom. "Olhe sempre para o lado bom da vida", como assobiaria o pessoal do Monty Python.

Trabalhei na cobertura do segundo turno das eleições, em 26 de outubro passado. Enquanto estava esperando o semáforo abrir, um carro grande parou ao meu lado. De dentro surgiu uma mulher que gritou "Volta pra Cuba!", elogiou a minha mãe, cuspiu em minha direção e saiu cantando pneus. O cuspe passou perto, mas não me atingiu – o que prova que, definitivamente, paulistano não tem mira… Aquele "Volta pra Cuba!", contudo, levou a reflexões que pariram o programa "Havana Connection", em uma tentativa de mais amor e diálogo e menos ódio e intolerância.

Aproveito para agradecer publicamente à dona do SUV. Quem disse que uma ação violenta não pode gerar algo bom? Um catarro pode ser apenas um catarro ou uma fonte de inspiração

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.