Por que trabalhadores sem-teto, quando organizados, incomodam tanto?
Cena de prédio ocupado. Zoom em uma latinha de cerveja. Câmera abre até mostrar um monte de gente pobre sentada em roda, rindo de algo. Locução do repórter cobrindo as imagens:
– Eles estão festejando a invasão de um prédio. Prédio que tem dono.
Close em um deles, no que fala "errado". Não mostrar mãe com bebê e cadeirante ao fundo. Foco na falta de dentes do entrevistado. Se estiverem sujos, melhor.
– Estamos esperando o governo nos atender, né?
Observação: Editar e jogar fora a parte do "Esse prédio tava assim, vazio, há quase dez anos. Só tinha rato e barata ,né? Agora tem um monte de gente morando nele, né? A gente não quer de graça, não. Quer pagar. Mas como só faz bico, ninguém acredita que a gente pode financiar".
Passagem para uma senhora idosa que vive da renda de aluguel em um outro prédio que não tem nada a ver com essa história. Close na lágrima da senhora:
– Minha sobrevivência depende da renda daquele imóvel. Eu nem sei o que seria de mim se um grupo desses o invadisse.
Subir som, resgatando versão de Milton Nascimento de "Coração de Estudante", cantada no funeral de Tancredo Neves.
Cortar a entrevista com a liderança que fala bonito – "Na verdade, a Constituição brasileira prevê que toda propriedade tenha funcão social, mas nem sempre isso é respeitado. Este edifício, por exemplo, está devendo R$ 25 milhões em IPTU e poderia ser alvo de um decreto de desapropriação sem que o governo pagasse praticamente nada por ele."
Observação: Se entrar essa declaração, a matéria sobe para o bloco de política e o diretor disse que é para ficar logo depois dos homicídios e assassinatos da madrugada do bloco de cotidiano.
Cortar as imagens de crianças brincando juntas. O chefe disse que nosso telespectador não quer ver criança pobre enquanto está jantando.
Passagem para a associação dos moradores da rua. Presidente da associação:
– O medo é grande por causa da possibilidade da ocupação contribuir para a desvalorização dos imóveis nesta rua.
Repórter:
– E o presidente da associação denuncia.
Presidente:
– As ONGs e os partidos políticos é que arregimentaram todo esse povo nas favelas para levar nossos imóveis. Muitos deles nem precisam de casa. Já têm quatro ou cinco. São bandidos querendo mais uma boquinha."
Entra um "povo fala". Colocar uma idosa senhora:
– Tenho medo de vandalismo.
Um comerciante:
– Eles são contra o progresso, não querem comprar nada, só roubar o que é dos outros.
Um policial:
– Normalmente, há muitas reclamações de alcoolismo e violência sexual envolvendo eles.
E um estudante. Encontrar o que tiver mais cara de hippie e falar para o próprio umbigo:
– Mas os sem-teto possuem um inalienável direito à dignidade e à qualidade de vida. Ou seja, há um princípio inerente aos seres humanos, que é o direito à moradia, que não pode – mas é – negada pelo capitalismo mais selvagem. Que não quer incluir, apenas devorar a mais-valia da força de trabalho.
Corta para o repórter na entrada do prédio.
– As invasões de imóveis por sem-teto, na última semana, fizeram com que o Brasil perdesse mais de R$ 1 bilhão em lucros de possíveis aluguéis e vendas.
Mostrar gráfico com dados da associação dos proprietários de imóveis ocupados por trabalhadores sem-teto.
Repórter completa:
– E, entre os invasores, há procurados pela polícia, provavelmente como Janjão, foragido há anos, por estripar uma criança de três com um compasso e um transferidor e depois beber seu sangue.
Volta para o estúdio, onde o apresentador faz beicinho de indignação, balançando a cabeça, antes de abrir um sorriso e chamar a matéria da preparação para o Carnaval. Segue para outro repórter, em um barracão de escola de samba.
– Estamos aqui com o carnavalesco responsável pela coreografia da escola campeã no ano passado.
Corta para o carnavalesco:
– O enredo da escola este ano será "Casa dos Homens, Morada de Deus: A história e o esplendor da residência na civilização" e mostrará a nossa trajetória, das cavernas aos grandes palácios. Trabalhadores sem-teto serão os personagens retratados nesta ala. Usamos muitas plumas. Sintéticas, é claro! E todo o restante é feito de material reciclado. Afinal de contas, temos que ser exemplos em sustentabilidade.
Ao fundo, moças e rapazes da classe média e estrangeiros, que nunca viram uma casa em situação de risco ou um barraco de favela precário, e que pagaram uma fortuna pelas fantasias, mostram trechos da coreografia. Dançando, suando, dançando, suando, dançando…
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