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Leonardo Sakamoto

Eu me irrito com essa gente pobre que perdeu a noção do limite

Leonardo Sakamoto

12/04/2015 11h52

Eu não me irrito com quem faz oposição a alguém ou a uma ideia pelo mero prazer de fazer.

Nem com quem acha que fazer política é xingar o outro, à esquerda ou à direita.

Nem com famílias que são obrigadas a morar ao relento ou em "casas" prestes a desabar.

Nem com comerciais de concessionárias de serviços públicos que fazem você acreditar que as altas tarifas e a péssima qualidade que oferecem são um favor para você.

Nem com o fato de uma mulher ganhar menos que um homem exercendo a mesma função, com a mesma competência, na mesma empresa.

Nem com violência sexual contra turistas estrangeiras ou brasileiras.

Nem com gente que tira selfie com a Tropa de Choque.

Nem com a pasteurização do cotidiano, nivelado pela novela.

Não me irrito com policial que desce o cacete em manifestante, sangra jornalista ou age com violência com quem não é "gente de bem".

Nem com o atropelamento de ciclistas e pedestres por conta da ignorância coletiva de uma cidade motorizada.

Nem com o surgimento imediato de centenas de sem-teto após desocupações patrocinadas pela especulação imobiliária.

Nem com ruralistas que tentam aprovar leis que promovem terra arrasada nas florestas do país.

Nem com quem prega que índio é tudo bêbado e indolente, feito os "primos" deles, os bolivianos, que vêm emporcalhar a cidade.

Nem com quem defende a justificativa de crimes passionais para atenuar um homicídio.

Nem com pretensos parlamentares patriotas que acham que estão defendendo a nação ao passar a régua sobre direitos dos trabalhadores, rifando a qualidade de vida das futuras gerações.

Nem com aquela gente fina que sobe o vidro do carro ao ver um negro pobre no cruzamento.

Nem com os elegantes que acham que simplesmente tocar em uma pessoa com HIV mata.

Nem com autointitulados representantes do divino que adorariam ver mulheres que abortaram ardendo, não no inferno, mas por aqui mesmo.

Nem com quem pensa que sonegar nada mais é do que fazer justiça fiscal com as próprias mãos.

Nem com homens da lei que fazem bico de jagunços e tocam o terror, adubando o chão da Amazônia e das periferias das grandes cidades com sangue.

Nem com idiotas que espancam gays nas ruas porque não conseguem conviver com a diferença.

Nem com a corrupção – dos empresários e políticos, mas também dos pequenos subornos do cotidiano.

Nem com pais e mães que acham que trabalho infantil enobrece o caráter.

Nem com militares da reserva que ficam tomando chá da tarde com bolinhos de chuva, falando mal da democracia, saudosistas da tortura.

Nem com gente que faltou às aulas de história e acha a ditadura super hype.

Nem com o trabalho escravo e quem diz que ele não existe por lucrar com ele.

Nem com filhinhos-de-papai-e-de-mamãe que queimam índios, matam mendigos e estupram meninas por aí, pois sabem que ficam impunes.

Nem com aquele pessoal estranho que prefere ver uma pessoa urrando de dor em uma cama de hospital ou sedada de morfina 24/7 do que lhe conceder o direito de finalizar a própria vida.

Nem com empresários picaretas que, na frente das câmeras, dizem que vão mudar o mundo e, por trás delas, poluem, destroem, exploram, enganam.

Nem com administradores públicos que adotam políticas higienistas para expulsar os rotos e remendados das ruas das cidades.

Nem com aqueles que consideram uma aberração um casal do mesmo sexo adotar uma menininha linda.

Nem com quem bate em mulher porque acha que é homem.

O que me irrita, de verdade, e me tira do sério, são as empregadas, que andam muito folgadas, e "perderam a noção do limite".

Além do trânsito, dos impostos e de aeroportos com cara de rodoviária, é claro.

(*) Lista ampliada, atualizada e revista como parte da campanha #somostodosridículos.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.