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Leonardo Sakamoto

Jesus, se andasse por aí, levaria uma bala na cabeça por ser negro e pobre

Leonardo Sakamoto

23/04/2015 10h54

Você que está fazendo qualquer coisa, tire alguns minutos para o insólito.

Leitores me enviaram um post da página do deputado federal Rogério Peninha Mendonça (PMDB-SC), no Facebook:

peninha

Taí, curti. Não faz firulas, nem tenta disfarçar. Um deputado federal que não tem medo de ser considerado ridículo.

"Senhor, não me faça nunca faltar bala na minha agulha, amém!"

Contudo, nove anos estudando em escola adventista mais anos de catequese e crisma têm que me servir de algo, não? De acordo com a versão da bíblia do rei James, Êxodo 22:2:

"Se um ladrão for surpreendido saltando um muro ou arrombando uma porta e, sendo ferido, morrer, quem o feriu não será culpado do sangue."

Tecnicamente, legítima defesa. Ou seja, compreensível.

O interessante é o versículo seguinte:

"Mas se essa ocorrência se der depois do nascer do sol, então será culpado de homicídio."

Moisés comunista! Volta pra Cuba, profeta safado! Você nunca iria entrar na Terra Prometida, defensor de bandido!

Poderia discutir horas o que isso significa, mas acho que muitos têm maturidade para refletir por conta e entender a diferença.

O deputado Peninha, que faz parte da "Bancada da Bala", é autor do projeto de lei que pretende revogar e substituir o Estatuto do Desarmamento, facilitando o porte por civis. A legislação, que restringiu o acesso a armas de fogo em 2003, impôs critérios técnicos para aquisição e nacionalizou o banco de dados de armamentos para contribuir com a investigação de crimes.

Entre outras propostas, o PL acaba com a necessidade de renovação do registro e, consequentemente, com a necessidade das pessoas passarem por novos exames psicológicos e técnicos e apresentarem novos atestados de antecedentes com periodicidade; altera de seis para nove o número de armas permitidas para um cidadão e aumenta o limite de munições por arma para os cidadãos – que passa de 50 por ano para 50 por mês.

Mas já que o deputado usou a bíblia para justificar o seu projeto de lei, convido-o a defender também a aplicação direta, reta e imediata da palavra divina para outros casos também previstos nos cinco primeiros livros do Velho Testamento que já trouxe aqui ao blog antes.

Por exemplo, vamos criar leis para repudiar:

– Banqueiros ("Não lhe darás teu dinheiro com usura, nem darás do teu alimento por interesse", Levítico 25:37);

– Comedores de camarão, polvo, lula (o molusco, não o político) e lagosta ("De todos os animais que há nas águas, comereis os seguintes: todo o que tem barbatanas e escamas, nas águas, nos mares e nos rios, esses comereis. Mas todo o que não tem barbatanas, nem escamas, nos mares e nos rios, todo o réptil das águas, e todo o ser vivente que há nas águas, estes serão para vós abominação", Levítico 11:09 e 10);

– Pessoas com cortes de cabelo estilosos ("Não cortem o cabelo dos lados da cabeça nem aparem as pontas da barba", Levítico 19:27).

– Agricultores, pecuaristas e representantes do setor têxtil ("Obedeçam às minhas leis. Não cruzem diferentes espécies de animais. Não plantem duas espécies de sementes na sua lavoura. Não usem roupas feitas com dois tipos de tecido", Levítico 19:19).

Ou também podemos largar tudo isso e seguir o que um outro sujeito barbudo disse:

No final das contas, será muito difícil salvar um rico.

Venda tudo o que tem e dê aos pobres.

Não importa o quanto você tem. Importa quem você é.

"Comunista! Volta pra Cuba, safado! Você nunca iria entrar na Terra Prometida, defensor de bandido! Deve ser coisa de Marx, ou seja, do capeta."

Na verdade, é coisa de Jesus de Nazaré (Lucas 18:18-30; Mateus 19:21; Mateus 6: 19-21).

Se vivesse hoje, ele certamente não seria crucificado, mas – negro e pobre – morreria jovem com um tiro na nuca, após uma operação policial desastrada, sob a justificativa de ser bandido, em alguma periferia de cidade grande brasileira. Ou seria executado por traficantes, daqueles que expulsam mães-de-santo em comunidades pobres, por não aceitar a injustiça no quintal de casa – executado com armas que já pertenceram aos "cidadãos de bem", mas foram roubadas e engrossaram o armamento do crime organizado.

Mundo louco esse, não?

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.