Topo

Leonardo Sakamoto

Não entendo pessoas que tratam políticos, militares ou juízes como heróis

Leonardo Sakamoto

31/08/2015 20h00

Não consigo entender pessoas que têm heróis. Menos ainda quem elege políticos para essa categoria.

Você pode admirar Lula, FHC, Alckmin, Marina, Haddad, Jean Wyllys, Dilma, Aécio. Até o Bolsonaro. Mas nenhum deles deveria ser tratado para além daquilo que são ou foram – mandatários eleitos por prazo determinado e representantes políticos.

Por isso, humor e críticas, mesmo que ácidas, a políticos deveriam ser encaradas de forma tranquila e não como declarações de guerra. Porque são diferentes de incitação à violência, ameaças e assédio – que configuram casos de polícia.

E seria saudável que o mesmo senso crítico baixasse nos que tratam funcionários públicos que usam fardas ou togas, bem como apresentadores de TV, jornalistas e blogueiros, como heróis.

Como já publiquei aqui antes, herói é o Antônio que acorda às 5h da manhã, pega suas coisinhas e, com duas conduções, sai da periferia da periferia e vai até o bairro de Santo Amaro para vender café da manhã na rua. Depois, quando os clientes desaparecem, começa a trabalhar no serviço de pintor, bico que rende algo no final do mês e, sinceramente, não vale a pena. Mas como ele tem três crianças e uma mulher com câncer em casa, que luta há anos para não morrer na rede pública, pois não tem acesso ao Sírio Libanês, é o jeito. À noite, acende o fogo e começa a vender "churrasquinho de gato" no ponto de ônibus para completar a renda. Chega em casa cinco horas antes de ter que acordar novamente. Um dia pôs sua churrasqueira para conseguir algum em um final de semana lotado de corrida perto do autódromo de Interlagos. A Guarda Civil Metropolitana, contudo, levou tudo embora. Como ele ia trabalhar no dia seguinte? Sei lá. Superação. Heroísmo.

É claro que nenhum de nós quer ter a vida de merda de Antônio.

Ela nunca sentirá o glamour do paddock de Mônaco e sua mulher, quando teve um problema sério e quase perdeu o braço, não pegou helicóptero, mas sim um busão para ir ao pronto-socorro. Não adianta dizer que ele é feliz, que tem Deus no coração, que a família o ama. Isso é apenas jogar purpurina em cima da merda para que ela brilhe.

A sua vida, muito provavelmente, não terá um final feliz para ser levada às telas do cinema. Não irá vencer a pobreza do sertão de Pernambuco e virar presidente ou superar o racismo da sociedade norte-americana e virar presidente. Também não será usado como exemplo de programas de educação estranhos como o "Amigos do Joãozinho", em que crianças que comem biscoitos de lama seca, brincam com ossinhos de rabo de zebu e andam 115 quilômetros diários para ir à escola superam tudo e, graças a Deus sem a ajuda do Estado, viram presidentes de multinacionais.

É Antônio, mas podia colocar aqui uma relação de nomes, grossa como uma lista telefônica, de pessoas que aceitam a mesma batalha no dia-a-dia porque se desistirem, morrem – e nunca ganharão uma medalha por isso. Não foram criados em berço de ouro e se houvesse uma escala justa que pudesse comparar diferentes superações, esses trabalhadores e trabalhadoras fariam nossos heróis da TV comerem poeira.

Pelo contrário, são tratados como restolho da sociedade, mão de obra barata, voto fácil, massa burra pelos mais ricos. Apesar de servi-los, alimentá-los, transportá-los, enriquecê-los. Se usineiros são heróis, cortadores de cana são o quê?

Esperemos que os livros de história e nós, narradores da contemporaneidade (não apenas os profissionais, mas todos os que têm uma conta de rede social, um blog, uma rádio comunitária ou um jornal mural e, portanto, são tão jornalistas quanto os outros), tenhamos a decência de registrar que não foram apenas reis, ditadores e presidentes e mesmo pilotos, jogadores de futebol e famosos, que fizeram a realidade do nosso tempo mas, sim, o conjunto dos carregadores de pedra, como diria José Saramago.

Na hora em que o nome de qualquer um desses milhões, cuja desgraça é apenas um detalhe e por isso mantém-se escondida embaixo do tapete, for retirado das entranhas da sociedade e gritado a plenos pulmões como alguém que merece ser um herói, não precisaremos mais de heróis. E a vida será outra.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.