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Leonardo Sakamoto

Descontextualizar: Uma forma de mentir usando a verdade

Leonardo Sakamoto

11/09/2015 08h04

Considerando que há colegas jornalistas que preferem literalmente dar rasteira na realidade ao invés de tentar compreendê-la, é natural que muita gente acredite que todo bicho peludo que aparece na mídia é fruto da má fé.

Na verdade, há outros responsáveis pelas besteiras que aparecem aqui e ali. Como a falta de tempo e de pessoal – que levam à exaustão dos poucos que ainda restam nas redações vitimizadas pelas demissões frequentes. Isso sem contar com a desatenção, a preguiça, a incompetência ou o azar puro e simples. Sim, gostamos de uma sangrenta teoria da conspiração, mas a verdade é que merdas também acontecem.

Independentemente da razão, a descontextualização de uma frase ou de uma imagem é pecado que mereceria dez pais-nossos, daqueles que as nossas avós mandavam a gente rezar ajoelhados no milho. Seja por distração, sensacionalismo ou "estrito cumprimento do dever" (tem gente que não sai com uma pauta para apurar, mas com uma tese para comprovar), a descontextualização é quando o jornalista sapateia na cara de quem lhe deu uma entrevista, causando a ira da fonte e, não raro, a construção de uma narrativa diferente da intenção original.

Por exemplo, um trecho de entrevista como:

"Discordo totalmente desse ponto de vista. A população indígena tem sido alvo de um lento extermínio nessa região do país. O número de mortos, vítimas de assassinatos por fazendeiros ou suicídios diante da impossibilidade de ter uma vida decente, se acumulam e a desnutrição decorrente da falta de condições para produzir alimentos ataca as crianças. Por isso, consigo entender a raiva dos brancos que esses indígenas sentem."

Transforma-se em:

"Para o antropólogo X, índios têm raiva dos brancos."

Ou uma declaração dada desta forma:

"O rapaz perdeu a família com cinco anos e cresceu na rua, não tendo nenhuma referência para discutir com ele valores e limites. Passou fome, passou sede, apanhou, foi violentado. Negaram a ele educação, saúde, abrigo. Foi vítima de abusos frequentes de policiais que o tratavam como bandido, mesmo não tendo roubado nada. Daí, criminosos que buscavam mão de obra para as suas atividades prometeram que nunca mais passaria fome nem apanharia se ele se juntasse ao bando. Quando esse jovem faz a opção pelo crime, no final das contas, é a única opção que enxergava para alcançar a dignidade.

Vira facilmente:

"De acordo com o sociólogo Y, a opção pelo crime é a única forma dos jovens pobres terem dignidade."

Esse tipo de descontextualização tem sido bastante usada na guerra de informação na internet. Quando um grupo tenta desacreditar uma ideia ou uma matriz de interpretação do mundo, pinça uma frase ou uma imagem fora de seu contexto e utiliza para seu argumento.

Como parte das pessoas não está preparada para ser uma leitora crítica mas, pelo contrário, foi condicionada a agir como gado diante do discurso de quem ela confia, acaba acreditando em tudo. Mas não devia.

Ou como resumiriam alguns:

"Blogueiro fala de guerra na internet, chama leitores de gado e incita o ódio."

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.