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Leonardo Sakamoto

Vamos começar a amarrar pessoas em postes para linchamentos por ideias?

Leonardo Sakamoto

17/10/2015 13h30

Quando uma turba idiotizada resolve fazer Justiça com os próprios cascos (com todo o respeito a cavalos e burros, que não têm culpa alguma na história) e parte para o linchamento de uma pessoa acusada de cometer um crime, usa – não raro – o discurso de que as instituições públicas não conseguem dar respostas satisfatórias para punir ou prevenir.

Afirmam, dessa forma, que estão resolvendo – como policial, promotor, juiz, júri e carrasco – o que o poder público não foi capaz de fazer, baseado em um entendimento do que é certo, do que é errado e do que é inaceitável. Mesmo que, ao final do dia, isso os transforme em criminosos mais vis do alguém que comete um furto, por exemplo, uma vez que a vida vale mais que a propriedade e não existe pena de morte no Brasil. Em tese, claro.

Portanto, é interessante que turbas idiotizadas estejam despontando, aqui e ali, resolvendo fazer Justiça com os próprios cascos (novamente, peço desculpas aos colegas animais), partindo para o linchamento de pessoas acusadas não de estuprar, roubar ou matar, mas de carregar uma ideia.

Em outras palavras, carregar uma ideia e demonstrá-la publicamente é, para algumas pessoas, motivo de linchamento físico. Mesmo que essa ideia não signifique incitar a violência contra outros brasileiros.

Talvez como "corretivo" para que aprenda a não mais fazer isso, talvez como punição por cometer uma heresia – palavra não empregada aqui aleatoriamente, pois a situação remete a momentos da Santa Inquisição que pensamos ter deixado para trás.

Não seguimos mais lideranças que, literalmente, queriam ver o circo pegar fogo contra quem defendia que o Sol não girava em torno da Terra ou que a interpretação da bíblia cristã podia ser outra. Pessoas que faziam isso em nome da autopreservação de sua hegemonia. Mas preocupa ouvir e ler relatos de pessoas que são obrigadas a tirar camisetas vermelhas com imagens de Che (ainda mais ele, que já havia sido fagocitado, alienado e entregue ao consumo pop) e bonés de movimentos sociais ou largar livros de Marx, sob o risco de apanhar de grupos enfurecidos.

Parte de ações antes restritas ao ambiente digital, vai ganhando escolas, locais de trabalho e ruas, fomentada por lideranças e pela ausência de uma cultura política do debate, da tolerância e da noção de limites.

Da mesma forma, é um absurdo colegas jornalistas apanharem nas ruas ao fazerem coberturas por trabalharem em determinados veículos – sejam eles da grande imprensa ou da independente, progressistas ou conservadores. Pois a ignorância e a incapacidade de diálogo não são monopólio de ninguém.

Não podemos esquecer que já linchamos sistematicamente pessoas cujo crime do qual são acusadas é o de criar rupturas em uma suposta harmonia da sociedade ao tentarem ser simplesmente quem são. O receio constante de apanhar ou ser maltratado não é novidade para muitos gays, lésbicas, transexuais, travestis, negros (principalmente jovens), indígenas, mulheres. Ou seja, cidadãos de segunda classe.

Mas estou indo um pouco além na provocação: seguindo essa toada, quando começaremos a amarrar pessoas em postes para linchamentos ideológicos?

O que a maior parte das hordas malucas que adotam o terror como modelo de atuação não sabem é que não se mata uma ideia matando quem a carrega. Porque uma ideia não pertence a uma única pessoa ou instituição. Ela, parida pela somatória das experiências de vida individuais e pela ação da razão, passa a pertencer à sociedade e ao seu tempo histórico.

Ou seja, uma ideia não morre simplesmente. Queimada na fogueira ou agredida em praça pública, ela se multiplica. Mas, se dialogada, com argumentos, tolerância e bom senso, pode ser transformada e, quiçá, aplicada. E, com isso, transformar, para melhor, a vida de todos os envolvidos.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.