Topo

Leonardo Sakamoto

A motorista bêbada que matou duas pessoas e a cela especial no Brasil

Leonardo Sakamoto

19/10/2015 13h16

Causou comoção nas redes sociais o assassinato de dois trabalhadores que pintavam sinalização para ciclofaixa, em uma avenida da Zona Norte da capital paulista, atropelados por uma motorista na madrugada deste domingo.

Uso "assassinato" porque não imagino outro termo para o atropelamento seguido de morte por alguém que, de acordo com o teste do bafômetro, dirigia embriagada.

A motorista Juliana Cristina da Silva, de acordo com a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), fugiu do local sem prestar socorro, mas foi alcançada por testemunhas, que chamaram a polícia. José Hailton de Andrade e Raimundo Barbosa dos Santos, que vieram do Piauí tentar a sorte por aqui, deixam famílias.

Para além da tragédia para todos os envolvidos, uma informação que vem sendo noticiada por canais de TV que tratam exaustivamente do caso, como a Globo e a Globonews, é o fato que a motorista está em uma delegacia com carceragem feminina, mas não no Centro de Detenção Provisória porque contaria com diploma de curso superior.

Já tratei do tema aqui, mas acho que vale resgatar a discussão. Pois a desigualdade social se manifesta de diversas formas, algumas mais tacanhas que outras. A prisão especial provisória para quem tem diploma, na minha opinião, é uma das mais descaradas.

Se duas pessoas cometem o mesmo crime, mas um delas estudou mais, esta poderá ficar em uma cela especial, separada dos demais presos até condenação (ou absolvição) em definitivo.

Se a outra tiver, digamos, até o ensino médio, terá que aguardar o julgamento com a massa, na xepa.

O carro envolvido no atropelamento (Helio Torchi/Sigmapress/Folhapress)

O carro envolvido no atropelamento (Foto: Helio Torchi/Sigmapress/Folhapress)

O artigo 5° da Constituição Federal diz que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza". Mas, na prática, a legislação brasileira confere o privilégio de não ficar em cárcere comum até o trânsito em julgado de uma decisão penal condenatória para alguns grupos. Em alguns casos, como juízes e delegados de polícia, por exemplo, faz sentido, em outos, como os detentores de diploma de curso superior, não.

Quem teve acesso à educação formal desfruta de direitos sobre quem foi obrigado, em determinado momento, a escolher entre estudar e trabalhar. Ou que, por vontade própria, simplesmente optou por não fazer uma faculdade.

Afinal de contas, só o pensamento limitado é capaz de considerar alguém superior por ter um bacharelado ou uma licenciatura. Posso ter mais conhecimento técnico em determinada área, mas isso não faz de mim – necessariamente – uma pessoa melhor.

O Senado Federal havia derrubado essa aberração presente no artigo 295 do Código de Processo Penal ("Serão recolhidos a quartéis ou a prisão especial, à disposição da autoridade competente, quando sujeitos a prisão antes de condenação definitiva: os diplomados por qualquer das faculdades superiores da República" – parágrafo único, inciso VII), mas a Câmara os Deputados barrou a mudança.

Concordo com a opinião dos juristas que ressaltam que estamos tratando de prisão provisória. Ou seja, considerando que, antes do julgamento e de uma condenação, há a presunção da inocência, seria importante que o regime desses presos fosse diferenciado. Mas, nesse caso, teria que valer para todo mundo – do iletrado ao que tem pós-doutorado. Assim, não seria a concessão de um privilégio, mas a garantia de um direito.

O atual Código de Processo Penal passou a vigorar em 1942, quando poucos tinham acesso ao ensino superior – situação que está mudando no Brasil.

Antes, o número de faculdades particulares era pequeno e as suas mensalidade altas, ao passo que os vestibulares das universidades públicas eram duros o bastante para quem estudou a vida inteira em escola pública e não tinha dinheiro para pagar um cursinho.

Não que o acesso tenha se universalizado, longe disso, mas ao mesmo tempo que aumentou o número de vagas em públicas federais (ainda que continuem bem insuficientes, diga-se de passagem), explodiu a quantidade de faculdades privadas, com mensalidades acessíveis ou possibilitadas por Fies e Prouni – muitas delas caça-níqueis e com qualidade  duvidosa. O fato é que muita gente do "andar de baixo" passou a obter diplomas de nível superior.

Quando muitos têm uma calça exclusiva, ela deixa de ser exclusiva e passa ser popular. Daí, quem detinha a exclusividade passa a pensar em outra forma de se diferenciar.

Qual seria o próximo passo? A construção de mais celas especiais ou a criação de outros critérios para garantir que nós, da elite, continuemos separados da ralé, agora com diploma?

Por enquanto o andar de cima não perdeu nada, por mais que os mais ricos reclamem que o povaréu tupiniquim ascendeu e está transformando aeroportos em rodoviárias e tirando seu sono.

Mais simples e melhor continua sendo o método: "tenha um bom advogado e seja feliz".

Com isso, fica mais fácil cometer barbaridades e ficar em um lugar "diferenciado" até o julgamento. E, mesmo julgado, permanecer separado da massa até que todos os recursos sejam esgotados – isso quando não consegue ficar em casa mesmo em um processo que pode levar mais tempo do que aquele que lhe resta de vida.

Com um bom advogado, é possível conseguir habeas corpus no Supremo Tribunal Federal de forma rápida.

Por que eles compram resultados? Não. Mas porque eles usam todos recursos possíveis para garantir tudo aos seus clientes – coisa que a xepa não consegue (ainda mais com a estrutura insuficiente à disposição das Defensorias Públicas).

Talvez a cela especial acabe quando o acesso ao ensino superior tornar-se tão comum quanto a alfabetização – o que pode levar algum tempo, mas há de acontecer.

Ou seja, não terá sido mérito nosso como sociedade essa mudança, mas do tempo, que – inexoravelmente – transforma tudo.

Ou quase tudo. Precisamos de leis com previsão de privação de liberdade para crimes graves – não para coisas ridículas como venda de maconha. E que sejam punidos, conforme essas leis, os que causaram grandes danos à vida dos outros ou à sociedade.

O problema é que prisões estão lotadas de pobres, com crimes ridículos, enquanto muitos ricos sabem que, dificilmente, serão – agora ou no futuro próximo – responsabilizados por seus delitos.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.