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Leonardo Sakamoto

Cinco razões para não gostar de São Paulo. E uma para amar (muito) a cidade

Leonardo Sakamoto

25/01/2016 10h11

Neste aniversário de 462 anos de São Paulo, este post traz cinco razões para não gostar da cidade. Afinal, ela segrega, separa, limita e exclui. Mas um motivo para amar este pedaço de terra e sua gente que nos faz lembrar que as outras cinco razões podem e devem ser mudadas.

Por que não gostar:

1) Qual a chance de você, sendo muito rico em São Paulo, ter no seu círculo de amigos próximos pelo menos a mesma quantidade de negros e de brancos na proporção da sociedade brasileira? E sabendo como funciona a formação de parte de nossa elite (segregando, separando, limitando, excluindo), a chance de um branco fazer contato com um negro quando criança, quebrando os padrões de reprodução social, é mínima. Fiz jornalismo na Universidade de São Paulo e, na época, sem políticas afirmativas étnicas e sociais, só tive uma amiga negra em uma turma de 25 pessoas. Há classes em que dei aula na PUC sem negros.

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2) Você que mora em um lugar civilizado, talvez tenha dificuldade para entender o que é viver dentro de um grande fumódromo, como São Paulo. Convivemos com uma faixa escura preenchendo o lugar em que estaria o horizonte em boa parte do ano. Somos reféns dos carros. Seja porque o poder público (com nossa anuência e apoio de montadoras e empreiteiras) manteve o foco no transporte individual em detrimento a investimentos pesados no coletivo, criando uma massa que acha que civilidade é ter um carro bom e não uma boa rede de trens, trams e ônibus. Quem vive em Sampa, traga o equivalente a três cigarros por dia. E, o pior, sem ter o barato do cigarro.

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3) A cidade possui uma área mais rica e urbanizada em seu chamado "centro expandido", cercada pelos rios Tietê e Pinheiros, e uma periferia mais pobre. Os moradores da área protegida pelas muralhas, sejam eles progressistas ou conservadores, revolucionários ou reacionários, vivem em relativo conforto e segurança em comparação com quem mora do lado de fora, que sobrevive trabalhando para a riqueza do burgo. Saúdo iniciativas como fechar vias para transformá-las em áreas de convívio aos finais de semana ou criar outros parques em regiões centrais. Contudo, cada medida tomada para a região central de uma grande cidade deveria vir precedida do quíntuplo delas nos seus extremos. Ocupar o centro principal de uma metrópole é importante, mas priorizar as periferias como o grande laboratório de boas práticas para qualidade de vida é saber efetivar a dignidade na urbe.

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4) A Justiça despeja centenas de famílias humildes de um terreno em São Paulo (que procurava uma casa) e os sem-teto é que são vândalos. Jovens criam bandos para espancar e matar e moradores de rua e a população em situação de rua (que procura simplesmente existir) é que é vândala. Obras superexploram trabalhadores em nome do progresso na capital, usando até trabalho escravo, e os operários migrantes (que procuram o mínimo para ter dignidade), que se cansam de tudo e resolvem fazer greve para serem notados, é que são vândalos. Ao mesmo tempo, ir para a rua protestar é crime. Exigir educação de qualidade é crime. Querer participar das decisões sobre políticas públicas é crime. Questionar seu governo é crime. Não conhecer e respeitar o seu lugar na sociedade é crime. E compreender que ser pobre, negro e periférico por aqui é automaticamente ser taxado de vândalo, a propósito, também é crime.

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5) Independentemente de quem é a culpa direta nas chacinas que ocorrem na cidade, muitos carrascos poderiam dizer que estavam "cumprindo ordens", como os nazistas em Nuremberg. Pois, o que ocorre em parte delas foi um servicinho sujo que vários cidadãos pacatos desejam em seus sonhos mais íntimos. Uma "limpeza social" de "classes perigosas" ou de "entraves ao progresso". Não é que a nossa sociedade não consegue apontar e condenar culpados por todas elas como deveria. Parece que ela simplesmente não faz questão. Jogamos na vala comum "culpados" – que não tiveram direito a um julgamento justo e receberam pena de morte – e "inocentes" – que mereceram, porque "se levaram bala, boa coisa não tinham feito". Seja pelas mãos do Estado ou de criminosos. O desejo mais sincero é que essa faxina social seja rápida, para garantir tranquilidade, e não faça muito barulho. Para não melindrar o "cidadão de bem", que têm horror a cenas de violência.

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Por que amar:

Os adeptos do "paulistanismo", o nacionalismo paulistano, patologia que prontamente vomita "São Paulo, ame-a ou deixe-a", não conseguem entender que amar um lugar não é ser dele prisioneiro ou lhe oferecer devoção cega.

Já escrevi isso aqui, mas acho válido repetir e republicar como a razão que me leva a gostar tanto da cidade. Os símbolos de São Paulo não deveriam ser os ásperos espigões da avenida Paulista, o verde do Ibirapuera, os aromas do Mercado Municipal, os sabores dos bons restaurantes e os sons da Sala São Paulo. Isso o tempo derruba e o vento leva embora.

São Paulo é um rapaz que nasce, negro e pobre, no extremo da periferia e, apesar de todas as probabilidades contrárias, chega à fase adulta. É um vendedor ambulante que sai de casa às 4h30 todos os dias e só volta tarde da noite, mas ainda arranja tempo para ser pai e mãe. É a jovem que, mesmo assediada no supermercado onde trabalha, não tem medo de organizar os colegas por melhores condições. É o estudante que foge e se tranca dentro da escola para poder aprender enquanto o poder público quer expulsá-lo de lá. É a travesti que segue de cabeça erguida na rua, sendo alvo do preconceito de "homens e mulheres de bem", sabendo que não consegue emprego simplesmente por ser quem é.

São Paulo é resistência. Não aquela cantada em prosas e versos, da resistência dos ricos e poderosos, que com seus grandes nomes deixaram grandes feitos que podem ser lidos em grandes livros ou vistos na TV. Mas a resistência solitária e silenciosa de milhões de anônimos que não possuem cidadania plena, mas tocam a vida mesmo assim. Se uma cidade é a soma das histórias de sua gente, então São Paulo vale a pena.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.