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Leonardo Sakamoto

O que dizer aos que chamam de "viado" quem critica machismo no Carnaval?

Leonardo Sakamoto

10/02/2016 09h02

Como era de se esperar em uma sociedade tolerante e aberta ao diálogo como a nossa, recebi uma série de elogios depois de publicar textos sobre assédio e violência sexual contra mulheres no Carnaval. Reproduzo um dos comentários simpáticos porque acho que ele abre um debate interessante:

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Caro Pablo, tudo bem?

Já tratei deste assunto anteriormente neste blog, mas seu comentário é um bom momento para resgatar a discussão.

O ator George Clooney que, antes do seu casamento com a advogada Amal Alamuddin, tinha a orientação sexual tornada motivo de pauta pela imprensa sensacionalista, afirmou certa vez que não desmentia boatos de que seria gay porque isso seria uma atitude grosseira com seus amigos gays e com os homossexuais em geral. Pois ser gay não é algo ruim ou vergonhoso e, para ele, não fazia diferença se pessoas ficassem em dúvida quanto à sua orientação sexual.

Então, faço minhas as palavras de George.

Mas creio que seu comentário, postado abertamente em rede social (por isso, acredito que não se importará de vê-lo exposto aqui), por alguma razão teve o objetivo de ofender este interlocutor e não discutir minha orientação sexual. Talvez pelo medo que você sinta vendo o mundo mudar à sua volta e o homem ir perdendo sua hegemonia autoproclamada numa velocidade que não está compreendendo. Sei que pode parecer complicado, mas um aviso importante: isso é irreversível. Então, acostume-se.

Sobre as raízes da sua intenção, vale um debate mais aprofundado.

Sabemos que dizer que alguém é "gay" ou "lésbica" em uma sociedade heteronormativa e machista como a nossa pode não ser simplesmente algo descritivo, mas carregar uma montanha de intenções negativas e discriminatórias. Porque o significado não passa apenas pela orientação sexual, mas todo um pacote de comportamentos fora do padrão que foram equivocadamente imputados a esses grupos ao longo do tempo.

O que não é aleatório, mas sim uma forma de separar o certo e o errado, o quem manda e quem obedece, ditados pelo grupo hegemônico. Como as piadas, que existem em profusão para rir de gays, travestis, negros, mulheres, terreiros, pobres, imigrantes e raramente caçoam de pessoas ricas ou famílias de comerciais de margarina na TV.

Mas imagine se isso não acontecesse, se a orientação sexual ou identidade de gênero de uma pessoa não fizesse diferença alguma – porque, na prática, não faz mesmo. Se assim fosse, caso alguém dissesse que um jogador de futebol é gay, por exemplo, ninguém se abalaria.

Mulher foi agredida no carnaval de Salvador após defender sua irmã de assédio sexual

Mulher foi agredida no carnaval de Salvador após defender sua irmã de assédio sexual

É claro que as torcidas de futebol, quando entoam coros chamando determinados jogadores de "bicha" ou "viado", que são termos depreciativo por mais que muitos de meus amigos gays tenham se acostumado e caçoem deles, têm o intuito de transformar uma orientação sexual em xingamento.

Reforçam, dessa forma, que ser "bicha" é ser ruim, ser frouxo, medroso, incapaz e tantos outros elementos acrescidos violentamente e agressivamente ao significado de ser "gay" ao longo dos tempos. Nesse caso, o uso da expressão não está atacando apenas o jogador (independentemente da orientação sexual do esportista), mas toda a coletividade, pois reforça preconceitos e questiona a dignidade de determinado grupo.

Fazendo um paralelo simples: um estádio inteiro gritando que um jogador negro é "negro" (atenção: não estou nem falando de praticar a ignomínia de xingar de "macaco") não é simples observação da realidade, mas quer passar um recado cuja intenção é péssima.

Assume uma conotação diferente do significado original da palavra, com um significado bem distante de gritar que um jogador branco é "branco". Pois sabemos bem que a sociedade dá pesos diferentes a negros e brancos e que o racismo ainda grassa por aqui, apesar de nossa cegueira coletiva.

Nesse sentido, creio que gritar "viado" para alguém assume sim um sentido não apenas ofensivo, mas também discriminatório. Não à pessoa que está sendo alvo do grito, mas a todos os homossexuais, reduzidos à condição de xingamento, de coisa ruim.

Gostaria muito de estar vivo para ver chegar o dia em que as diferenças de gênero ou de orientação sexual serão vistas como algo tão banal que passem batido. Talvez, nesse mundo futuro, ninguém queira ofender outra pessoa por algo que deveria ser visto como o branco do olho.

Amar alguém de um jeito diferente do seu não deveria suscitar ódio, deveria Pablo?

Por fim, este texto não é para te criticar em público. Mas um convite à reflexão. Porque nós, homens, somos ensinados, desde cedo, a sermos agressivos e a demonstrar violência como reafirmação de uma identidade boba e de uma condição ultrapassada. E confesso que o trabalho de desconstrução disso é lento, imperfeito e leva toda uma vida. Mas é necessário.

Pelo bem dos outros, pelo nosso bem.

Um grande e fraterno abraço.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.