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Leonardo Sakamoto

No semáforo, quem é gente: o jovem com guache ou o idoso que pede esmola?

Leonardo Sakamoto

15/02/2016 10h02

– Oi, tudo bem? Você poderia me dar uma moedinha. Eu passei na faculdade.

Vendo a cena que se desenrolava em um semáforo paulistano, uma pessoa em situação de rua que também fazia ponto naquele local e olhava ressabiado para a profusão de felicidade pintada de guache, provido de uma capacidade de sobrevivência deliciosa, achegou-se enquanto o jovem ainda estava lá pendurado à janela do carro:

– O senhor também poderia me dar uma? Eu também passei. Passei fome, passei frio, passei necessidade…

A história tem um lirismo ímpar, ainda mais porque foi narrada por um advogado que presenciou a cena.

Dar dinheiro alegremente – quiçá projetando-se no outro a fim de reviver um saudoso momento e participar de um rito comum à sua classe social – o "pedágio", que faz parte dos trotes de calouros. Ou dar dinheiro de forma constrangida – por ter melhores condições em um país extremamente rico e proporcionalmente desigual, sentindo-se obrigado diante da circunstância no semáforo ou sob o efeito de sentimentos como a pena.

Qual foi o desfecho? Nem te conto. Fica mais interessante que cada um termine a história do seu próprio jeito.

Sem falsos moralismos, importa menos a conclusão que damos ao caso do que o caminho que levamos para chegar até ela. Ou seja, não é porque você não deu a moedinha ao "playboyzinho" e sim ao "mendigo" (dois termos depreciativos com os quais discordo mas achei útil neste contexto) que você vai para o céu. Até porque o céu não existe. Já o inferno…

Isso lembra outra história. Um Beetle (o Fusca reestilizado com preço estratosférico) cor-de-rosa parou no cruzamento de uma área nobre de São Paulo. No interior, apesar dos vidros fechados, dava para ver uma moça por volta de seus 20 anos e um rapaz da mesma idade, ambos aparentando terem sido criados com leite Ninho na infância. Finos. Um velho homem, sem-teto, se aproxima do carro para pedir uma esmola. A idade pesa e ele encosta no capô enquanto faz o pedido aos ocupantes.

Pânico rosa-choque. A menina gesticula freneticamente. Aperta um botão no painel de seu carro e liga um alto-falante para falar com o mundo exterior:

– Tire as mãos do carro!

O idoso, surpreso, obedece. O semáforo abre e o carro arranca. O homem percebe naquele momento que está na escala de valores abaixo da cera da lataria do automóvel.

Qual a razão de você estabelecer um laço de empatia com o desconhecido que está do lado de fora do seu automóvel? Você se sente mais na obrigação de doar para alguém que veja como um igual do que para qualquer outra pessoa em situação de extrema necessidade?

Ou só doaria porque a história se parece com aquele que te comoveu na TV ou na internet nos últimos dias?

E se a pessoa lhe contou uma mentira para lhe arrancar umas moedas? Decerto, há muita gente que esmola sem precisar, quase como uma profissão. Mas como você não tem como saber, vai ter que confiar na palavra alheia. E se essa pessoa estiver passando dificuldade e percebeu que é mais fácil os cidadãos de seu país se compadecerem com determinada história?

Enfim, a pessoa em necessidade que mente e pede esmola deveria ser punida por entender as atuais regras desse jogo? A mentira não seria, neste caso, socialmente perdoável, tal qual um furto famélico de um pacote de biscoitos, que não deveria levar à cadeia?

Que mundo é esse em que alguém miserável se passa por outra pessoa em situação deplorável no intuito de garantir a sua sobrevivência?

Por que o sentimento de solidariedade muitas vezes é seletivo? Por que há brasileiros que sentem empatia por refugiados sírios e não por refugiados haitianos, que buscam sobreviver em São Paulo? Faz diferença se a pessoa for negra ou branca? Se sorri ou não? Se cheira bem ou se fede?

Não estou defendendo aqui que doe ou não uma moeda no semáforo.

Você pode considerar que dar dinheiro é uma ação pontual e não estrutural ou que não vai ao encontro do que acredita e se negar sempre.

Mas o julgamento que fazemos dessa situação diz muito mais sobre nós mesmos do que sobre ela em si.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.