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Leonardo Sakamoto

E se Dilma apertasse a tecla "foda-se"?

Leonardo Sakamoto

14/03/2016 11h42

Eu não me aguentei. Resgatei um devaneio publicado aqui, atualizando-o para o momento.

O mordomo do Palácio da Alvorada, acostumado ao humor peculiar da suprema mandatária da República, surpreendeu-se com a pessoa amável que lhe deu um "bom dia" radiante, nesta segunda (14), disse "um cheiro, meu nêgo" e lhe desferiu um abraço apertado. Dilma não estava mais catatônica. Dilma não parecia Dilma.

"A chefe não está bem", pensou. A preocupação cresceu quando ela deixou de fazer a costumeira ligação do chora-ministro logo cedo – e foi às tampas literalmente quando desceu até a cozinha e agradeceu aos companheiros da cozinha pela gemada.

Chegando ao Planalto, trancou-se em seu gabinete, solicitou "O Glorioso Retorno De Quem Nunca Esteve Aqui", do Emicida, "Sobrevivendo no Inferno", dos Racionais, e – é claro – o Acústico MTV, do Paulinho da Viola, exigindo não ser interrompida em hipótese alguma.

Todos os auxiliares próximos, em pânico por conta da multidão que foi às ruas no dia anterior pedindo a cabeça de Dilma, não entendiam o que podia ser mais importante que traçar um plano para bloquear o impeachment.

Lula na Casa Civil? Entregar mais um ministério para o PMDB? Entregar a esplanada inteira, mais os rins e o fígado, para o PMDB? Semipresidencialismo? Parlamentarismo com Aécio primeiro-ministro? Monarquia constitucional com Bolsonaro como primeiro-ministro?

Ao final da segunda, e sem explicar a ninguém, convocou uma coletiva à imprensa para apresentar o que ela chamou de seu "Último PowerPoint".

Vestindo uma camiseta com a mensagem "Bernie 2016" e em uma calma nunca antes vista na história deste país, sem gaguejar ou falar de cachorros, crianças e figuras ocultas, muito menos saudar a mandioca, explicou que os planos haviam mudado. E que a Carta ao Povo Brasileiro, divulgada por Lula para tranquilizar o mercado nas eleições de 2002, estava, agora, na reciclagem. O mercado que fosse pro inferno.

Dizendo que não estava nem aí para quanto tempo durasse seu mandato, informou que Nelson Barbosa, Katia Abreu e mais da metade da Esplanada dos Ministérios estava demitida.

Frente ao rosto incrédulo dos presentes, declarou que terras indígenas e quilombolas pendentes seriam demarcadas imediatamente, uma reforma agrária estrutural (e não o arremedo feito até aqui) seria realizada pra ontem e um decreto destinaria, para a moradia popular, todos imóveis mantidos vazios nas grandes cidades pela especulação imobiliária. Informou que as novas e desnecessárias hidrelétricas do Tapajós estavam canceladas em definitivo e que havia encaminhado uma proposta aos 27 governadores para a desmilitatização da polícia.

Enquanto alguns ministros que assistiam a cerimônia passavam por um infarto agudo do miocárdio, ela afirmou que já haviam sido enviadas para o Diário Oficial medidas provisórias para implementação de taxação de grandes fortunas e sobre grandes heranças, como início de uma profunda reforma tributária, e uma reforma política radical para incentivar a participação social e a democracia direta.

Apresentou um projeto para o fim da isenção fiscal de igrejas e avisou que estava mandando retirar todos os símbolos religiosos, como crucifixos e afins, das laicas repartições públicas federais. Disse que o governo estava pedindo a retirada de todas as propostas de reformas trabalhista e previdenciária, chamando para um grande debate público sobre o tema. Afirmou que vetou a lei antiterrorismo e que facilitaria o aborto legal na rede de saúde pública.

Além do mais, ordenou a revisão de todos os contratos ilegais de concessão de rádios e TVs. E a suspensão de toda a publicidade de mídia tradicional e alternativa pelo governo e estatais até que uma legislação regulamentasse essa grande Casa da Mãe Joana.

Por fim, distribuiu cópias de dossiês para a imprensa com provas de corrupção envolvendo os partidos da base aliada, incluindo PT e PMDB, e os partidos de oposição, como o PSDB, o DEM, o PP, o PTB, entre outros, muito, muito além da Lava Jato.

Não poupou a direção do Congresso Nacional, do Judiciário, do Ministério Público e das Forças Armadas.

Listou, com provas, os malfeitos envolvendo todos os presidentes desde a redemocratização e mandou abrir os arquivos considerados secretos da época da ditadura, mostrando a corrupção que grassou naquele período.

Arrematou tudo com uma longa lista de todos os empresários doadores de campanha que se beneficiaram indevidamente do governo federal desde a redemocratização para muito além apenas das construtoras. Como os bancos.

E só para zoar, citou nominalmente os deputados e senadores usuários de psicoativos que, sistematicamente, se dizem contra a legalização da maconha.

Os jornalistas, catatônicos, não fizeram uma única pergunta.

Os ministros apenas observavam, de longe, com cara de espanto.

As autoridades convidadas desapareceram – de Brasília.

Cunha foi visto comprando passagem para Myanmar.

Temer fugiu disfarçado de crossdresser.

A única manifestação veio de Maria, antiga copeira do Planalto num comentário sincero que ecoou pelo salão: "Afe! A mulher lascou tudo agora".

Dilma deu tchau, dispensou a escolta, pegou sua bicicleta e voltou pedalando para o Alvorada ouvindo "Desconstruindo Amélia", da Pitty, no mp3.

O mordomo, que – incrédulo – acompanhara tudo pela TV, perguntou a ela se estava tudo bem.

– Olha, Antônio, não sei, viu… Sabe aqueles dias em que você acorda e sente que é outra pessoa?

– Não sei, não, senhora.

– Deixa pra lá. Tem como fazer mais daquela gemada?

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.