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Leonardo Sakamoto

A esquerda é maior que partidos políticos. E mais resistente ao tempo

Leonardo Sakamoto

03/04/2016 10h04

Somos educados desde cedo para tomar partido na luta do bem contra o mal e não para entender a pluralidade de pontos de vista ou mesmo o fato de que "bem" e "mal"' são construções que atendem a interesses de determinados grupos sociais. Que não são absolutos e precisam ser enxergados à luz de seu contexto.

É tão raso quando alguém atribui a origem de todos os males a um único partido, seja PT ou PSDB (tenho dúvidas sobre o PMDB, mas vá lá). Ainda mais quando sabemos que as coisas são bem mais complexas e que um posicionamento político não significa filiação partidária.

Já publiquei esta discussão no blog, mas frente à violência política que estamos vendo nas redes e nas ruas por parte de simpatizantes dos mais diversos posicionamentos políticos, resolvi atualizá-la.

Fico fascinado quando alguém identifica um perfil de esquerda (desculpe, mas na falta de uma categoria melhor para agrupar essa massa disforme vai essa palavra desgastada e mal-entendida mesmo) em minha matriz de intepretação do mundo e, ato reflexo, me chama de "petista".

Como se todo o petista fosse obrigatoriamente de esquerda (nada mais equivocado) e como se toda esquerda não fosse, em si, muito maior que um partido em questão.

Isso lembra o início do século 20, quando imigrantes libaneses e sírios eram chamados, por aqui, indiscriminadamente de turcos por causa do passaporte emitido pelo Império Otomano. O que, claramente, deixava muitos libaneses e sírios intrigados.

Revolta expressa de forma magistral pelo turco Rachid, da novela Renascer? "Nós não turco, nós li-ba-nês". Então, como já disse antes neste blog, repito para ser bem didático: nós não petista, nós de es-quer-da.

Concordo com ações adotadas pelo governo federal quando elas vão ao encontro de um ponto de vista sobre qual deve ser a real função do poder público (como a libertação de escravos e a implementação de instrumentos para punir economicamente empresas que se beneficiam da superexploração do trabalhador).

Pondero quando o governo toca ações importantes, mas que precisam de melhorias para efetivarem todas as suas possibilidades e criarem sustentabilidade (como o próprio Bolsa Família).

E protesto veementemente quando o governo vai contra o que tenho como princípio. Por exemplo, o tomaladacá no Congresso e a corrupção como instrumento de governabilidade, a política anacrônica de "desenvolvimento", que passa por cima de comunidades indígenas e tradicionais para gerar energia elétrica, o assalto aos direitos trabalhistas e previdenciários no intuito de fazer caixa e resolver os erros do próprio governo, propor um lei antiterrorismo bisonha. Que, infelizmente, tem sido a maioria dos casos.

Este blog tem quase dez anos de vida. Quem frequenta este espaço sabe que o estelionato eleitoral do atual governo não representa minha visão de mundo. Este que vos escreve tem muito mais textos criticando políticas do Planalto do que concordando com elas. Mas isso não importa. Pois na cabeça de muita gente, de um lado ou de outro, estamos vivendo uma guerra. E, em uma guerra, encontramos espécimes que latem coisas do tipo: "Ou você está comigo ou está contra mim, porque o mundo se divide em amigos e inimigos".

O que torna os almoços de família no domingo uma prova de resistência hepática.

Mesmo um partido no governo ou na oposição não é algo monolítico e sim dividido em correntes. E há divergências entre base e cúpula ou quem trabalha em função remunerada e quem é voluntário. Há pessoas que ficam possessas com atitudes das altas instâncias de um partido, pois acreditam nas mesmas bases que levaram à fundação de um partido décadas atrás.

Nesta semana, emprestei um ombro para dois amigos, um do PSDB e outro do PT, lamentarem que ambas as agremiações são, hoje, apenas uma sombra dos ideais do passado. Lembrei a eles que, se tudo der errado, teremos sempre o bom e velho Bernie Sanders.

Tal qual um sinal colorido captado por uma televisão em preto e branco, encontramos com frequência gente que, diante de uma profusão de cores e tonalidades, forçam o mundo a perder toda sua riqueza e se ajustar a uma realidade com menos graça. O que reina são tons de cinza. E, ainda assim, menos de 50 deles.

Mas como exigir que consiga verbalizar a distinção de cores se elas nunca lhe foram devidamente apresentadas? Ou, pior: se sistematicamente mostramos esse mundo na mídia, evitando dar voz aos diferentes matizes ou mostrá-los? Pelo contrário, mostramos que tudo se resume a céu ou inferno – quando, na verdade, céu e inferno não existem.

Cultura política deveria ser algo mais bem fomentado, desde cedo, via estrutura formal de educação. Mas também através de nosso trabalho como jornalistas, evitando simplificações políticas, onde há complexidade.

Animar o debate público de qualidade para mostrar que há matizes e zonas cinzentas mesmo dentro de grupos que parecem coesos é fundamental. Não fazendo picuinhas, mas analisando o que significa cada discurso.

Ajudaria, é claro, se todo mundo LESSE OS TEXTOS ATÉ O FINAL ao invés de só passar o olho pelos títulos e fotos e fizesse um esforço para sua interpretação. Mas como atravessamos a adolescência da internet, em que as pessoas estão com os hormônios à flor da pele, vale uma certa quantidade de resignação e de torcida para que a fase de descobertas pessoais passe rápido.

A esquerda e seus ideais são maiores que partidos que dizem falar em seu nome e decepcionam o povo ao se tornar aquilo que mais criticavam no intuito de se manter no poder. Esse erros fazem com que décadas se percam, passos sejam dados para trás, conquistas acabem lançadas no lixo.

Mas a esquerda também é maior que pessoas que não gostam de ler livros de história. Porque a história de movimentos contra-hegemônicos é uma história de reconstrução.

Um partido pode se esfacelar diante de seus erros e dos crimes de seus membros. Mas uma ideia, não. Líderes, falsos ou verdadeiros, caem a toda a hora. Mas uma ideia, não. Podemos morrer a qualquer momento, atropelados por um carro ou atingidos por um maluco. Mas a ideia defendida coletivamente sobrevive.

Porque a ideia da luta por justiça social e dignidade e pelo direito à identidade e o combate à desigualdade nas grandes cidades e no campo segue viva com movimentos, coletivos e organizações. Bem como a defesa de uma democracia popular e participativa, longe dos palácios e mais perto do povo.

Com pessoas conversando, reconhecendo-se na opressão e tomando as rédeas da sua própria vida e do lugar em que vivem.

Para alguns, isso é reconfortante. Para outros, desesperador…

Dias atrás, publiquei uma entrevista que criticava Dilma, dizendo que ela atacava a democracia por sancionar a lei antiterrorismo. Daí, recebi mensagens de leitores dizendo que havia acabado a minha "bolsa-mortadela" e eu tinha ido para a oposicão.

Naquela noite, postei outro texto falando sobre a manifestação contra o impeachment na Paulista e o risco do macarthismo à brasileira, em tempos que não se pode usar vermelho na rua.

Um dos leitores, que me criticara no primeiro texto, revoltado, me escreveu. Perdido, não sabia me posicionar entre o seu céu e o seu inferno e perguntou: "O que você é afinal, seu idiota?".

Daí, lembrei-me do saudoso Eduardo Galeano:

"A Igreja diz: o corpo é uma culpa. A Ciência diz: o corpo é uma máquina. A publicidade diz: o corpo é um negócio. E o corpo diz: eu sou uma festa."

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.