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Leonardo Sakamoto

Quilombolas: Em busca das terras prometidas pela Constituição

Leonardo Sakamoto

19/05/2016 17h49

Apenas 7% das famílias quilombolas vivem em áreas tituladas. Na busca pelo reconhecimento dos territórios, comunidades enfrentam ameaças, confisco de objetos históricos e resistência até do órgão de preservação do patrimônio.

A titulação dos quilombos é assessorada pela Fundação Cultural Palmares, entidade que era ligada ao Ministério da Cultura e agora, com sua extinção e subordinação ao Ministério da Educação, responderá ao ministro Mendonça Filho. Seu partido, o Democratas (DEM), move uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3239), no Supremo Tribunal Federal, questionando exatamente o decreto que regulamenta a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação de terras quilombolas.

O texto é de Stefano Wrobleski e as fotos de Lilo Clareto, especial para a Repórter Brasil, produzidos a partir de comunidades quilombolas em Codó, no Maranhão.

As novas cercas dos quilombos, por Stefano Wrobleski e Lilo Clareto

Na última sexta-feira (13/05), a canetada da Princesa Isabel que aboliu oficialmente a escravidão no Brasil completou 128 anos. Com a Lei Áurea, muitos dos libertos engrossaram os quilombos já existentes ou se organizaram em novas comunidades. Mas o reconhecimento do direito dos povos negros a seus territórios tradicionais só viria cem anos depois, com a Constituição de 1988. Apesar de prever a propriedade definitiva das áreas remanescentes de quilombos, até hoje apenas 16 mil famílias – de um total de 214 mil – vivem em áreas devidamente tituladas, de acordo com dados do governo federal.

A titulação é a última etapa de um longo processo que tem início com a "auto-definição" das comunidades quilombolas – assessorada pela Fundação Palmares, entidade ligada ao Ministério da Educação e Cultura – e prossegue em órgãos estaduais e federais, como Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), responsáveis por estudos antropológicos e desapropriações de terra (confira o passo a passo da titulação de terras quilombolas).

No local onde estaria localizada a casa grande da fazenda na comunidade Santana, são encontrados muitos vestígios da antiga habitação, como cacos de louça e antigas ferramentas. - Iran Oliveira dos Santos, 9 anos, brinca com cacos achados. Fotos: Lilo Clareto/Repórter Brasil

No local onde estaria localizada a casa grande da fazenda na comunidade Santana, são encontrados muitos vestígios da antiga habitação, como cacos de louça e antigas ferramentas. Iran Oliveira dos Santos, 9 anos, brinca com cacos achados.
Fotos: Lilo Clareto/Repórter Brasil

Dos cerca de 2.700 quilombos de todo o país já certificados pela Fundação Palmares, só 163 chegaram à etapa final e foram titulados. No Incra, a morosidade é absoluta: "A questão é que há mais de 1.500 processos abertos no Incra, mas o órgão não tem capacidade de encaminhá-los", afirma Otávio Penteado, assessor da Comissão Pró-Índio de São Paulo, organização que também lida com a questão quilombola. Para Otávio, a falta de titulação das terras ocorre por "desinteresse político", o que se traduz em cortes orçamentários na área.

A mudança na composição dos ministérios que o presidente interino Michel Temer (PMDB) realizou assim que Dilma Rousseff foi afastada pelo Senado, na semana passada, agravou as preocupações das entidades ligadas à questão quilombola. Na última quinta-feira (12/05), o deputado federal ligado à bancada ruralista Osmar Terra (PMDB-RS) foi nomeado para a pasta de Desenvolvimento Social e Agrário, que é responsável pelo Incra. Também foi extinto o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, que coordenava o Programa Brasil Quilombola e executava políticas voltadas às comunidades negras tradicionais.

O governo interino de Michel Temer ainda não detalhou as medidas que vai tomar com relação à titulação de territórios quilombolas. Porém, Fernando Prioste, assessor jurídico da organização Terra de Direitos, acredita que a legislação atual pode ser substituída por uma que atenda pleitos da bancada ruralista, "como não fazer desapropriações e reverter a questão da auto-definição".

Quilombolas do Maranhão fazem a cerimônia de um ano da morte de morador local, entoando cânticos e rezas tradicionais (Foto: Lilo Clareto/Reporter Brasil)

Quilombolas do Maranhão fazem cerimônia após um ano da morte de morador local, entoando cânticos e rezas tradicionais

O confisco da panela

Além dos entraves políticos e institucionais, comunidades quilombolas de todo o Brasil, de tradição essencialmente oral, também enfrentam dificuldades para comprovar sua presença ancestral nas áreas que reivindicam. Em alguns casos, sofrem até ameaças de morte enquanto aguardam pela homologação de seus territórios.

Há um ano, as lideranças de diversos povoados da zona rural do município de Codó, no interior do Maranhão, reclamam a devolução de uma grande panela do século XIX. Em 2015, o artefato foi confiscado com ajuda da Polícia Militar por funcionários do Instituto Histórico e Geográfico de Codó (IHGC), órgão local de preservação do patrimônio histórico.

A panela, além de ter um valor afetivo e religioso para a população, é peça-chave no processo de reconhecimento da comunidade como área remanescente de quilombo. O imbróglio coloca em risco a posse da terra ocupada tradicionalmente pela comunidade de São Benedito dos Colocados. "A panela é importante porque é um símbolo real, de resistência da comunidade", afirma Valdivino Silva, um dos principais responsáveis por reunir e contar as histórias do povoado, que espera há um ano e meio pela titulação do território.

Os negros dos mais de 200 povoados rurais de Codó – 85% da população do município se definem como preta ou parda, de acordo com o Censo de 2010 – são lembrados por Valdivino como descendentes daqueles que trabalharam à força em plantações de algodão para os grandes latifundiários da região até a Lei Áurea de 1888, que acabou com a escravidão.

Criança quilombola da comunidade de Mata Virgem, no Maranhão. Foto: Lilo Clareto/Repórter Brasil

Criança quilombola da comunidade de Mata Virgem, no Maranhão

Trazida da Inglaterra, a panela de ferro fundido e de um metro de diâmetro era usada para alimentar os escravos das lavouras. Renato Barbosa, morador do povoado, conta que o artefato foi resgatado do esquecimento no início do século 20, na comunidade de São Benedito dos Colocados. Lá, a história parece brotar do chão. Vez ou outra, a população encontra a poucos centímetros debaixo da terra restos de porcelana, moedas e aparatos que eles esperam, junto com a panela, usar para comprovar a ocupação tradicional da área aos técnicos do Incra, que têm a missão de determinar em estudos se o território pode ser definido como quilombola.

O confisco da panela pelas autoridades de Codó aconteceu de surpresa, conta o vereador Pastor Max (PTdoB). "Ele [José Ribamar Amorim, presidente do IHGC] usou da truculência, usou policiais e não deu satisfação àquelas pessoas. Não tinha nem um pedido judicial. Até hoje, o atual presidente [do IHGC] está escondendo a panela, ninguém sabe onde ela está. Por que ele não faz a mesma coisa com pessoas ricas que aqui têm artefatos?", questiona. O vereador assinou uma moção de repúdio pelo caso contra o presidente do instituto.

Interior da casa de um quilombola de Mata Virgem, Maranhão

Questionado pela Repórter Brasil, o presidente do IHGC justificou a ação afirmando que a panela não pertencia a "nenhuma fazenda quilombola ou de escravos". Segundo José, "o neto do dono da fazenda [onde hoje ficam alguns dos povoados quilombolas de Codó] nos doou a panela, que tinha sido quebrada por essa comunidade". Ele afirma que, nos próximos dias, pretende abrir ao público a exposição do artefato, na sede do IHGC.

Porém, não é isso que o povoado deseja: "O nosso acervo histórico, de nossa comunidade, nós mesmos vamos construir um espaço para conservar. Nós somos protagonistas da nossa própria história e nós podemos guardar aquilo que é nosso", reclama Valdivino, a liderança local.

Como os moradores dos povoados não têm a posse da terra, o Ministério Público estadual afirmou que não poderia fazer nada para resolver o impasse.

Cemitério da comunidade quilombola Benedito dos Colocados (MA)

R$12 mil por cabeça

Em outro povoado do município, a pressão contra a permanência da comunidade chegou a ser feita inclusive por pistoleiros armados. As famílias de Mata Virgem, que detêm desde 2012 uma certidão da Fundação Palmares de auto-reconhecimento como quilombo, foram aterrorizadas ao longo de um ano em suas terras, vizinhas de uma grande fazenda de um ex-deputado estadual.

Segundo José Rodrigues Magalhães, vice-presidente da associação local, quatro pistoleiros andavam recorrentemente pelo local, atirando para o alto para assustar as 23 famílias do povoado.

Ele e Antônio Santana da Silva, outra liderança local, dizem ter ouvido dos pistoleiros que o preço pelas suas cabeças chegava a R$12 mil, caso ultrapassassem os limites impostos pelos capangas. "Fiquei preocupado porque não tinha o direito nem de ir, nem de vir. A qualquer momento, eu podia ser morto", diz Antônio.

Menina quilombola brinca dentro da antiga sede da fazenda FOTO: Lilo Clareto/ Repórter Brasil

Menina quilombola brinca dentro da antiga sede da fazenda

As ameaças cessaram depois de diversas denúncias encaminhadas à polícia e a organizações de direitos humanos. Agora, os moradores da comunidade tentam preservar uma casa grande abandonada pelos herdeiros de um senhor de engenho da região enquanto aguardam os servidores do Incra para comprovar que aquela terra de uso comum, onde seus antepassados foram escravizados, pertence de fato a eles.

Antiga sede da fazenda, a casa grande era o local de moradia da família que detinha a propriedade. A história de Mata Virgem simboliza o destino de parte dos negros que, em 1888, saíram da escravidão e  organizaram comunidades próximas aos locais de origem – diferentemente dos quilombos existentes até então, formados em áreas distantes das fazendas por homens e mulheres fugidos, do tempo em que a escravidão ainda era legal.

Crianças brincam em meio às ruínas da Casa Grande de Mata Virgem. Foto: Lilo Clareto/Repórter Brasil

Crianças escrevem nas paredes da antiga Casa Grande na comunidade quilombola de Mata Virgem

Hoje em ruínas, a antiga casa grande é usada pelas crianças quilombolas para brincar. Apesar de saberem das histórias dos antepassados, o local foi apropriado pela nova geração, que pode inventar novos significados para o seu território.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.