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Leonardo Sakamoto

Pânico nas redes sociais: Se "Bolsomito" não é invulnerável, nós também não

Leonardo Sakamoto

22/06/2016 12h26

Muita gente não se deu conta do impacto da decisão do Supremo Tribunal Federal que aceitou, nesta terça (21), denúncia de incitação ao crime de estupro e transformou o deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) em réu em uma ação penal. Bolsonaro havia declarado, no Congresso Nacional, que não estupraria a deputada Maria do Rosário porque ela "não merece", repetindo o conteúdo em uma entrevista.

Segundo os ministros que avaliaram a denúncia, apresentada pela Procuradoria Geral da República, Bolsonaro não estava respaldado por imunidade parlamentar porque o ocorrido não teve relação com o exercício de seu mandato. Segundo o relator Luiz Fux, a mensagem que ele proferiu significa que há mulheres em posição de merecimento de estupro. "A violência sexual é um processo consciente de intimidação pelo qual as mulheres são mantidas em estado de medo."

Independentemente do desfecho do caso, essa decisão é emblemática. Os ministros do STF deixaram claro que ninguém pode usar sua liberdade de expressão para atacar os direitos fundamentais de outros grupos e pessoas. Isso é óbvio, mas vinha sendo ignorado de forma sistemática neste clima de polarização política que vivemos.

Bolsonaro é considerado um exemplo por muita gente – incluindo parte significativa da elite brasileira que o prefere como presidente da República em comparação a outros candidatos de acordo com pesquisas eleitorais. E o seu comportamento – de rolo compressor verbal sobre a dignidade de minorias em direitos – tem certamente inspirado muitas pessoas a fazerem o mesmo com a certeza de que nada aconteceria com eles. Até porque nada acontecia com seu líder.

Agora, aterrorizados, muitos de seus seguidores passaram o dia protestando contra a decisão do STF nas redes sociais. Afinal de contas, se "bolsomito" não é imortal, imbatível e invulnerável, podendo ser punido pela Justiça caso incite violência sem se preocupar com as consequências, o exército digital que o segue (e consegue ser mais violento que seu líder) também pode.

Muita gente na internet confunde opinião com discurso de ódio. É um erro bem comum quando não se está acostumado às regras do debate público de ideias. O anonimato traz aquela sensação quentinha de segurança e, por conta disso, não raro, as pessoas extrapolam. Sentem-se livres de punição pelos seus atos. Afinal de contas, na rede é menos simples (mas não impossível) identificar quem falou ou fez a abobrinha.

Vamos por partes: o direito ao livre exercício de pensamento e o direito à liberdade de expressão são garantidos pela Constituição e pelos tratados internacionais que o país assinou. Vale explicar, contudo, para quem não é familiarizado com leis e normas, que a liberdade de expressão não é um direito fundamental absoluto. Porque não há direitos fundamentais absolutos. Nem o direito à vida é. Prova disso é o direito à legítima defesa.

Pois a partir do momento em que alguém abusa de sua liberdade de expressão, indo além de expor a sua opinião, espalhando o ódio e incitando à violência, isso pode trazer consequências mais graves à vida de outras pessoas.

Pessoas como Bolsonaro dizem que não incitam a violência. Sabemos que não é a mão delas que segura a faca ou o revólver, mas é a sobreposição de seus discursos ao longo do tempo que distorce o mundo e torna banais o ato de esfaquear, atirar e atacar. Ou, melhor dizendo, "necessários", quase um pedido do céu. São pessoas como ele que cozinham lentamente a intolerância, que depois será consumida pelos malucos que fazem o serviço sujo.

A liberdade de expressão, contudo, não admite censura prévia. Ou seja, apesar de alguns juízes não entenderem isso e darem sentenças aqui e ali para calar de antemão biografias, reportagens, propagandas, movimentos sociais, a lei garante que as pessoas não sejam proibidas de dizer o que pensam. E foi isso o que aconteceu. Bolsonaro quis falar, Bolsonaro falou.

Entretanto, as pessoas são sim responsáveis pelo impacto que a divulgação de suas opiniões causa. Como foi o caso de dirigir a um grupo específico (mulheres) um sentimento de ódio. E toda pessoa que emitir um discurso de ódio está sujeita a sofrer as consequências: pagar uma indenização, ir para a cadeia, perder o emprego, tornar-se inelegível na próxima eleição. Afinal, o exercício das liberdades pressupõe responsabilidade. Quem não consegue conviver com isso, não deveria nem fazer parte do debate público, recolhendo-se junto com sua raiva e ódio ao seu cantinho.

Por fim, a responsabilidade por uma declaração é diretamente proporcional ao poder de difusão dessa mensagem. Quanto mais pública a figura, mais responsável ela deve ser.

O problema, portanto, não é ter opinião. Muito menos declará-la. E sim como você faz isso. De forma respeitosa ou agressiva? Privilegiando o diálogo de diferentes e buscando uma convivência pacífica, ou conclamando as pessoas para desrespeitar ainda mais aqueles vistos como diferentes por medo ou desconhecimento? Como disse Paulo Freire, todos somos guiados por ideologias. A diferença é se sua ideologia é inclusiva ou excludente.

Vocês acham que as pessoas que ficam indignadas com as declarações de Bolsonaro são uma minúscula minoria da população? Desconfio que não. Uma grande parte acha graça no que ele fala ou mesmo concordou com ele, tal como a plateia riu quando Alexandre Frota contou uma narrativa de violência sexual em um programa de TV.

A decisão do Supremo, portanto, é civilizatória. Não apenas para Bolsonaro, mas para aquilo que encaramos no espelho diariamente.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.