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Leonardo Sakamoto

Temer arma circo para buscar filho na escola. Fará o mesmo ao rasgar a CLT?

Leonardo Sakamoto

27/07/2016 09h50

Um pai deve compartilhar as tarefas relativas à formação de seu filho ou sua filha. Isso é o básico, não é favor. Afinal de contas, tarefas domésticas ou familiares não são incumbência de determinado gênero, mas responsabilidade de pais e mães. Se você fica orgulhoso por "ajudar sua mulher em casa" e acha que merece um troféu de Maridão do Ano, rapaz, acorde. Você está no século 21, não faz mais do que sua obrigação.

Dito isso, quase fundi meu cérebro tentando entender o que passou pela cabeça do presidente interino Michel Temer ao convocar a imprensa para registrar o momento em que buscou, ao lado de sua esposa, seu filho em uma escola de Brasília.

Michel e Marcela Temer buscam filho na escola (Recorte de foto de Adriano Machado/Reuters)

Michel e Marcela Temer buscam filho na escola (Recorte de foto de Adriano Machado/Reuters)

Na tentativa de melhorar sua imagem junto à população, quis demonstrar que é uma pessoa igual a todas as outras e apanhou o mancebo em seu primeiro dia de aula depois da mudança para a capital.

Mas o circo montado soou tão fake, forçado e artificial que me deu play num verso do "Canto de Ossanha", de Vinícius de Moraes e Baden Powell: "O homem que diz 'sou' não é". Para quem acompanhou a cobertura pela rede, ficou a impressão de que o tiro saiu pela culatra.

Isso sem contar que foi um uso um tanto quanto discutível de uma criança em uma tentativa de autopromoção. Mas para quem colocou dois imóveis utilizados como escritório que valem mais de R$ 2 milhões no nome do filho de sete anos, alegando o direito de antecipação de herança, digamos que o circo foi o de menos.

Particularmente, como assessor de comunicação, caso ele realmente quisesse insistir nesse erro, eu o aconselharia a algo menos traumático para as outras crianças e famílias da escola que não queriam aquele tipo de exposição, mas acabaram pagando o pato sem querer. Aliás, pagar pelo pato dos outros é o que mais estamos fazendo ultimamente.

Por exemplo, não chamar os colegas jornalistas e divulgar, horas depois, apenas uma foto tirada discretamente pela sua assessoria. Talvez incluindo um comentário de Michel sobre a importância de dividir as tarefas familiares em um país em que, segundo a Organização Internacional do Trabalho, homens gastam 9,5 horas semanais com afazeres domésticos, enquanto que as mulheres que trabalham dedicam 22 horas semanais para o mesmo fim.

Com isso, apesar da jornada semanal média das mulheres no mercado ser inferior a dos homens (36 contra 43,4 horas, em termos apenas da produção econômica), a jornada média semanal das mulheres alcança 58 horas e ultrapassa em mais de cinco horas a dos homens – 52,9 horas – somando com a jornada doméstica. Ou 20 horas a mais por mês. Ou dez dias por ano.

Isso sem falar que, quando um casal trabalha fora terceiriza o serviço doméstico, normalmente, para outra mulher, seja ela babá, faxineira ou cozinheira. E, diante da possibilidade de pagar os direitos trabalhistas a quem faz o trabalho doméstico, parte da classe média pira e diz que tudo isso é muito injusto.

No Brasil, brincar de casinha é coisa de menina.

Enquanto isso, fazer política é coisa de menino. Como o ministério de Michel, composto de homens, brancos, héteros.

Mas uma nota assim, reafirmando direitos trabalhistas, seria difícil surgir.

Porque traria à tona, além das contradições sobre a falta de equidade de gênero na Esplanada dos Ministérios, a defesa de algo que o governo já avisou que quer dilapidar – implodindo a CLT e dificultando  a aposentadoria de quem está na ativa.

Espero que quando "nosso presidente" sancionar propostas, como a que amplia a terceirização e a que sobrepõe o negociado ao legislado mesmo em caso de perda para o trabalhador, ou a que estabelece uma idade mínima para se aposentar (que, na prática, pode excluir da Previdência Social os trabalhadores braçais pobres que morrem cedo neste país), também chame a imprensa para registrar o momento em que assinará a regressão ao passado. Será uma imagem muito mais sincera, coerente e natural que o circo armado na porta da escola.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.