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Leonardo Sakamoto

Chega de intermediários: Bora alugar o país de vez

Leonardo Sakamoto

09/08/2016 10h45

Em vez de garantir o funcionamento do Sistema Único de Saúde, o governo Temer passou a discutir a criação de um "plano de saúde popular", mais barato e com uma cobertura menor do que a lista mínima obrigatória de serviços e procedimentos dos planos privados atuais.

A justificativa é aliviar o SUS. Mas manter o sistema funcionando apenas para os mais pobres significa desidrata-lo até que desapareça. Deveríamos estar caminhando para o caminho oposto, garantindo qualidade e fazendo com que a classe média – e seu poder de pressão – usasse cada vez mais os serviços públicos, monitorando suas condições.

Não muito diferente dessa lógica foram os governos do PT que alimentaram faculdades caça-níqueis com financiamentos estudantis, que cobram dos mais pobres por um ensino ruim, incapaz de garantir subsídios para que eles possam assumir o protagonismo de suas próprias vidas.

Ninguém nega que a abertura de mais universidades públicas federais foi fundamental, mas se ao invés de encher o bucho dos donos de particulares os recursos tivessem sido integralmente destinados ao aumento de vagas públicas, a história teria sido diferente: o ensino superior teria caminhado um pouco mais para ser público de fato, lugar fértil de encontro, negociação e embate entre classes e grupos sociais distintos. Fundamental para gerar empatia, base do diálogo para construir o futuro.

Mas talvez essa discussão caia em desuso uma vez que setores mais abastados da sociedade defendem publicamente e sem pudor a cobrança de mensalidades em universidades públicas, seja para a graduação, seja para a pós. Dizem que elas são frequentadas por ricos e que ricos podem pagar por elas. Ignoram a estratificação dessas instituições que, se por um lado, mostra mostra que os cursos mais concorridos ainda são preenchidos pela elite, por outro, há uma grande maioria composta por oriundos da escola pública ou de escolas privadas periféricas.

Nem bem conseguimos efetivar cotas para negros, indígenas, quilombolas e os mais pobres e já vamos para o ralo. Ou seja, da barbárie para a decadência, sem passar pela civilização. O sucateamento do ensino público superior também só interessa a quem quer ganhar dinheiro com o sistema privado, que é pífio em capacidade de pesquisa básica e extensão. Ou privatizar o sistema público e, daí, ganhar dinheiro com ele.

Nesse contexto, faz todo o sentido que o governo Michel Temer queira tornar possível que direitos como férias, 13o salário, jornada semanal e tempo de almoço, hoje garantidos pela CLT, possam ser negociados livremente entre patrões e empregados. É o negociado sobre o legislado, menina dos olhos do empresariado, parte da Ponte para o Futuro, do PMDB, que funcionará como um Poço para o Passado e pode ser aprovada sem precisar passar pelo Congresso, por canetada presidencial.

Com tudo isso, mais a imposição de um teto de gastos para educação e saúde, o que reduzirá o tamanho da participação do Estado nessa áreas ao longo do tempo, a sensação é de que, mais dia, menos dia, a administração da República vai pular os intermediários e será feita diretamente por um pool de empresas a partir da avenida Paulista, em São Paulo.

Será que chegará o dia em que trocaremos o Hino Nacional, aquela longa fanfarra que ninguém sabe cantar direito, por jingles de comerciais de TV louvando os grandes feitos do setor produtivo?

Imagina só uma canção emocionante, falando das conquistas do agronegócio (imagino até o clipe, com uma criança correndo por extensas pastagens e soprando um dentes de leão), de frigoríficos (com vacas e frangos felizes), de construtoras (com pedreiros escancarando gargalhadas embotados de cimento e lágrima), de grandes varejistas e indústrias (com traveling em câmera lenta para um grupo de operárias fazendo um joinha), de bancos (com clientes endividados abraçando gerentes de forma emocionada) e, como não esquecer, dos produtos de grandes grupos de mídia (com trechos da Escrava Isaura, claro). Tudo cantado pelo Fábio Jr.

Considerando que boa parte das musiquinhas entoadas em estádios ou mesmo em protestos que usam camisetas da CBF como uniforme já nasceu em comerciais de TV mesmo, acho que podemos assumi-los de vez.

Se assim for, voto pela música dos "pôneis malditos" para ficar no lugar do hino estadual paulista. Sim, por aqui temos um, também chamado de o "Hino dos Bandeirantes", cuja letra traz "Em Bandeira ou Monção/Doma os índios bravios,/Rompe a selva, abre minas, vara rios!" Traduzindo: É nois na fita, chegando junto, escravizando, desmatando, explorando, causando geral.

Uma vez que conseguiram convencer parte da população que mudanças nas regras da exploração de petróleo na camada de pré-sal (um dos maiores patrimônios que poderíamos garantir às próximas gerações, que está sendo entregue de bandeja), é algo que vai ajudar a reerguer o país, então ficou provado que aceitamos qualquer coisa.

Então, chega de intermediários e meias medidas. Bora aproveitar o cartão de visitas das Olimpíadas para alugar o país de vez?

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.