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Leonardo Sakamoto

Como SP pratica censura ao furar olho de fotógrafo e culpá-lo por isso

Leonardo Sakamoto

18/08/2016 14h30

O fotógrafo Sérgio Silva foi considerado culpado pela Justiça do Estado de São Paulo por ter sido atingido por uma bala de borracha e, consequentemente, perdido o olho esquerdo. O disparo partiu da Polícia Militar, cuja repressão a um protesto pela redução na tarifa dos transportes públicos, no dia 13 de junho de 2013, deixou um rastro de manifestantes e jornalistas feridos.

O juiz da 10ª Vara de Fazenda Pública Olavo Zampol Júnior afirmou que "ao se colocar na linha de confronto entre a polícia e os manifestantes, [Sérgio Silva] voluntária e conscientemente assumiu o risco de ser alvejado por alguns dos grupos em confronto".

A decisão judicial  indefere o pedido de indenização movido pelo fotógrafo contra o governo de São Paulo. O juiz ainda falou da importância de jornalistas se precaverem nessas situações e omitiu o papel do Estado, transferindo a responsabilidade para quem perdeu a visão.

"No caso, ao se colocar o autor entre os manifestantes e a polícia, permanecendo em linha de tiro, para fotografar, colocou-se em situação de risco, assumindo, com isso, as possíveis consequências do que pudesse acontecer, exsurgindo desse comportamento causa excludente de responsabilidade, onde, por culpa exclusiva do autor, ao se colocar na linha de confronto entre a polícia e os manifestantes, voluntária e conscientemente assumiu o risco de ser alvejado por alguns dos grupos em confronto (polícia e manifestantes)", diz a sentença. À decisão, de primeira instância, cabe recurso.

Ou seja, os profissionais de imprensa deveriam gritar para a polícia "Perdoa-me por me sangrar!" – no melhor estilo de Nelson Rodrigues.

O fotógrafo Sérgio Silva, que perdeu o olho esquerdo após ser atingido por um disparo da polícia. Foto: Junior Lago/UOL

O fotógrafo Sérgio Silva, que perdeu o olho esquerdo após ser atingido por um disparo da polícia. Foto: Junior Lago/UOL

De acordo com nota divulgada pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), 61% dos 98 casos de agressões da PM paulista contra profissionais de imprensa durante as manifestações de junho de 2013 foram intencionais, quando a vítima estava identificada ou se identificou como jornalista.

Ou seja, grande parte dos ataques não são acidentes. Pelo contrário, alguns policiais sabem muito bem o que estão fazendo. E os chefes deles também. E Secretários de Segurança Pública. E governadores. E presidentes. O que só torna a situação pior, uma vez que eles não estão atacando apenas o profissional de imprensa que está lá, mas impedindo que a população saiba exatamente o que está se passando para formar sua opinião.

A Abraji também lembra quem, em setembro de 2014, a 2ª Câmara Extraordinária de Direito Público do TJ-SP decidiu que o fotógrafo Alex Silveira era culpado por perder 80% da visão de um dos olhos, após ser atingido por uma bala de borracha em 2003.

Tão intolerável quanto um manifestante levar cacetada covardemente sem ter feito absolutamente nada para colocar em risco a vida de outras pessoas, é um jornalista ser agredido quanto está tentando registrar e transmitir uma história. Seja ele da mídia tradicional ou alternativa.

É censura perpetrada através de violência de Estado.

O poder público não atua decentemente em certos protestos e aglomerações para além de meter bala, bomba e cacetada, criando um ambiente de guerra em que tudo pode acontecer. Em outros, distribui selfies. Policiais despreparados, falta de comando, ordens bizarras, má fé, enfim, não se controla fogo jogando álcool. Ou procurando armas de destruição em massa em frascos de Pinho Sol.

A verdade é que o poder público tem apostado na criminalização prévia de movimentos sociais e na geração de narrativas que transformam milhares de manifestantes pacíficos em baderneiros para reafirmar sua posição junto a uma parcela expressiva do eleitorado que prefere um sentido distorcido de ordem acima do respeito aos direitos civis. E, no final, culpa o agente policial ou o manifestante pelo ocorrido, quando os maiores responsáveis estão longe dali, nos palácios e gabinetes

Ou melhor, clima de guerra, não. Já cobri mais de uma vez conflitos armados fora do país e nunca vi nada parecido.

Como já disse aqui, em outras profissões, teríamos protestos ou uma ação coletiva mais forte para denunciar o que está acontecendo. Talvez até cruzaríamos os braços. Por aqui, muitas vezes abaixamos a cabeça e torcemos para que, na próxima vez, não seja conosco – assumindo o mesmo padrão que adotamos quando uma demissão coletiva assola um veículo de comunicação sem que, antes, patrões e empregados tenham conversado para checar se essa era mesmo a única saída.

Como profissionais cuja função é cobrar o poder público não conseguem sair desse estado de catatonia? Não é uma questão de posicionamento político, ser a favor ou contra manifestações. É liberdade de expressão.

Quando o cinegrafista Santiago Andrade foi morto pelo disparo de um projétil, a comoção gerada pressionou para que ocorressem investigações, que apontaram para manifestantes. Mas casos de jornalistas feridos pelas mãos da polícia normalmente não encontram a mesma indignação.

Para além disso, o ataque à impunidade sozinho não vai resolver a questão de como a imprensa é vista ou tratada, pela sociedade ou pelo Estado. Para isso, precisamos também rever nosso próprio comportamento e nos perguntar se fazemos parte desse tecido social ou se acreditamos no mito bobo do "observador independente e imparcial"? Então, abrir um diálogo honesto.

Por fim, que nós, jornalistas, tenhamos dignidade de relatar à exaustão o que está acontecendo, listando responsáveis diretos e indiretos, a fim de que cada cicatriz deixada nos colegas seja devidamente deduzida do patrimônio eleitoral dos mandatários e de seus indicados.

Ou a gente só é corajoso quando é com os outros?

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.