Para economizar, frigoríficos escondem doenças de seus empregados
Por Piero Locatelli, da Repórter Brasil
Quando encontrei Osmarina no portão de sua casa, ela sequer conseguia ficar em pé sozinha. Para caminhar menos de dez metros, amparou-se na parede apoiando o outro braço em sua filha. Ela havia passado um ano deitada em sua cama após uma cirurgia na cervical, e agora reaprendia a andar, mas ainda sem conseguir mexer o pescoço e as mãos.
Osmarina conta que "destruiu" a coluna trabalhando no frigorífico da JBS em Lins, interior de São Paulo, durante 11 anos. Ela pegava pedaços de carne em uma esteira e os colocava dentro de caixas, oito horas por dia.
A relação entre carregar pedaços de boi com 15 quilos e destruir as costas pode parecer clara. Mas, para a JBS, uma coisa não tem nada a ver com a outra. Hoje, Osmarina está "encostada" com uma aposentadoria do INSS, que ela conta sequer ser suficiente para os seus remédios.
Osmarina mora em Santa Terezinha, um bairro pobre da periferia de Lins onde quase toda casa tem um funcionário da JBS. Fui levado até ela por outros trabalhadores em situações parecidas, que listavam vizinhos com lesões por esforço repetitivo, inflamações nos músculos, hérnia de disco e dificuldades de audição. Todos creditavam isso ao tempo no frigorífico, e se sentiam desamparados pela empresa.
Os moradores de Santa Terezinha são vítimas de uma prática comum de diversos frigoríficos: eles não comunicam todas as doenças geradas ou agravadas pelo trabalho à Previdência Social conforme a lei manda, segundo fiscalização do Ministério do Trabalho e o relato de trabalhadores do bairro. Casos como esse sustentam uma complexa indústria de subnotificações de doenças, onde os trabalhadores são os grandes prejudicados.
Ao ocultar as doenças dos seus empregados, as empresas economizam em diferentes frentes, e todos os outros contribuintes acabam pagando pelos problemas que elas causam através do INSS. Enquanto isso, os trabalhadores doentes seguem sem nada que possa amenizar a sua situação.
Doença é um bom negócio – Além da JBS, ao menos dois outros grandes frigoríficos, Marfrig e BRF, também fazem o mesmo com seus trabalhadores, segundo fiscalizações de auditores fiscais do trabalho. Todos já foram multados em diferentes estados pela "falta de emissão da CAT (Comunicação de Acidente de Trabalho)", como é conhecida a infração.
A multa pela infração é baixa, e as empresas raramente são responsabilizadas na Justiça por isso. Dessa forma, na ponta do lápis, vale a pena deixar trabalhadores adoecerem e omitir isso das autoridades segundo o auditor fiscal Mauro Muller, que já inspecionou frigoríficos em diferentes estados. "Às vezes a empresa prefere pagar a multa de novo do que melhorar o processo [de produção]," diz o ele.
O argumento de Muller fica claro quando olhamos o valor da multa: entre R$ 622,00 e R$ 3.916,20 por trabalhador. Para uma empresa como a JBS, com uma receita superior a 100 bilhões por ano, o valor parece bem aceitável.
O que a empresa deveria fazer? – Ao primeiro sintoma de uma doença relacionada ao trabalho, as empresas deveriam comunicar o problema à Previdência. Tosses em um ambiente cheio de pó ou problemas auditivos em uma fábrica barulhenta já seriam suficientes para isso.
No caso de Osmarina, o caso deveria ter sido comunicado quando ela reclamou ao seu supervisor sobre as dores nas costas, quatro anos antes de se afastar do trabalho. A JBS, porém, diz que não há nexo entre o problema de saúde a sua função na empresa. "A conclusão médica pericial foi de que a funcionária é portadora de enfermidades de caráter crônico-degenerativo ocasionando incapacidade parcial e permanente para atividades laborais, não havendo nexo causal com o trabalho," disse a empresa em nota enviada à reportagem. Porém, ainda que Osmarina tenha de fato uma doença degenerativa, o trabalho certamente contribuiu para agravar o quadro dela, o que obrigaria a empresa a comunicar o problema (leia a íntegra da resposta).
Os frigoríficos fazem vista grossa à maioria das doenças que poderiam ser prevenidas desde o início. As empresas reconhecem somente alguns dos casos mais graves, quando o trabalhador necessita ficar mais de 15 dias afastado e passa a receber os benefícios pagos pelo INSS. Mas nem mesmo o afastamento de trabalhadores é o suficiente para alterações naquilo que causa o problema, como uma máquina que pode gerar o mesmo dano a outros trabalhadores. "Após o término do atestado, o trabalhador retorna ao trabalho e novamente é obrigado a se expor às mesmas condições anteriores," explica Renata Matsmoto, auditoria fiscal do trabalho em São Paulo especializada em ergonomia.
Médicos não revertem o problema – Para fazer as empresas serem responsabilizadas pelos problemas de saúde que causam a seus empregados, o Ministério da Previdência Social publicou uma lista em 2007 que relaciona a atividade de um trabalhador a uma doença que ela desenvolve: o Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário (NTEP).
A lógica é simples: se muitos trabalhadores de determinada atividade desenvolvem ou agravam uma doença, a causa deveria ser reconhecida automaticamente pelos médicos do INSS. Em frigoríficos, por exemplo, é comum a existência de lesões por esforço repetitivo devido aos movimentos feitos durante todo o dia. Entre motoristas de ônibus, há muita ocorrência de problemas de bexiga porque eles têm que segurar a vontade de ir ao banheiro. Se a doença consta na lista, é o empregador quem precisa provar que a doença não foi causada pelo trabalho.
A lista incomodou muito a indústria brasileira. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) tenta derrubar o NTEP no Supremo Tribunal Federal alegando que ele é inconstitucional. O principal argumento contra a lista é a ideia de "causalidade", ou seja, de que as doenças nem sempre têm a ver com o trabalho exercido. Na ação, eles argumentam que os sintomas não podem ser generalizados, e o caso de cada trabalhador deve ser analisado separadamente.
Apesar de ainda existir oficialmente, o NTEP muitas vezes é inócuo. Os médicos da Previdência Social costumam referendar aquilo que dizem os médicos das empresas, segundo Paulo Rogério Oliveira, criador do NTEP e doutor em Ciências da Saúde. A comunicação também pode ser feita por sindicatos e pelo próprio trabalhador, mas, nesses casos, acaba tendo menos peso junto aos médicos do INSS.
Como isso afeta o trabalhador – Se seguido à risca, todo esse trâmite burocrático não tem a capacidade de curar uma doença, mas ao menos pode amenizar os problemas de alguém aposentado precocemente por causa de doenças geradas pelo trabalho. Quando o INSS reconhece que a doença do trabalhador foi causada ou agravada pelo seu trabalho, ele ganha 90% do seu salário pago pelo governo. Sem esse reconhecimento, eles acabam encostados como Osmarina – sem nenhum tipo de auxílio e recebendo a aposentadoria mínima da Previdência, que hoje é de R$ 880.
Quando nem a empresa e nem o INSS reconhecem o problema do trabalhador, a única forma de fazê-lo é na Justiça – um caminho caro e longo. Elizette Braatz, ex-funcionária do frigorífico da BRF em Chapecó, oeste de Santa Catarina, é um desses raros casos. Ela trabalhava há quatro anos injetando tempero em perus quando começou a sentir dores nos braços e nas costas. Mesmo com atestados de médicos particulares, ela sequer conseguia folgas. "Eu sentia que minha saúde estava cada vez mais devastada. E o que eles me aconselhavam era pedir as contas," lembra.
Elizette trabalhou até o dia anterior a fazer uma cirurgia na lombar, seis anos após os primeiros sintomas. Sem reconhecimento da empresa e do INSS, conseguiu, quase dois anos após a cirurgia, a reversão do caso na Justiça. Hoje, ela recebe um 'auxílio acidentário', quando a empresa é obrigada a prestar auxílios como a continuidade da concessão de plano de saúde e o depósito do FGTS.
A empresa afirma que "a colaboradora citada pela reportagem recebeu o apoio necessário e que a perícia médica indicou incapacidade temporária de 12 meses para a sua recuperação, prazo este finalizado em junho de 2015." (Leia a íntegra da resposta da BRF)
O que a empresa ganha? – Quando deixam de comunicar casos de empregados que adoecem em função do trabalho, as empresas economizam no pagamento do Fator Acidentário de Prevenção, um índice que serve para calcular quanto cada empresa deve pagar ao governo para bancar aposentadorias especiais e benefícios decorrentes de acidentes de trabalho.
Esse índice é calculado a partir de vários indicadores, e um deles é o número de acidentes de trabalho. Empresas sem acidentados ou doentes, por exemplo, pagam a metade da alíquota ao fundo. Ao omiti-los, as empresas maquiam os números reais e reduzem o valor que deveriam pagar.
Outro motivo para esconder esses problemas é a estabilidade garantida em lei para o trabalhador acidentado. Se o médico do INSS reconhecer a culpa da empresa, ela não pode demiti-lo por um ano. Como a CAT é o primeiro passo para esse reconhecimento, os empregadores preferem não fazê-lo e, assim, ficam livres para demitir funcionários com a saúde debilitada pelo próprio trabalho.
Perguntamos às empresas por que, afinal, elas comunicam menos doenças do que deveriam, como atestam os auditores fiscais do trabalho. Todas elas afirmaram que cumprem com a legislação trabalhista e emitem as CATs conforme a legislação. (Leia a íntegra da resposta das empresas: JBS, BRF e Marfrig)
Como evitar as doenças? – Toda essa discussão sobre a falta de reconhecimento das doenças ocupacionais pode desviar o foco do que realmente importa: diminuir os problemas de saúde causados pelo trabalho.
Do jeito como as coisas funcionam hoje, as multas dos auditores fiscais e gastos com ex-funcionários como Elizette não abalam o orçamento dessas empresas, segundo Paulo Rogério Oliveira. Para ele, a única maneira de mudar esse quadro seria a responsabilização criminal sobre os proprietários das empresas, a partir de ações do Ministério Público Federal.
Enquanto isso, os problemas de saúde contraídos pelos trabalhadores dão prejuízo à Previdência. Em 2015, a União gastou R$ 23,2 bilhões com auxílios a trabalhadores afastados por doenças. Para diminuir esse gasto, o atual governo editou uma Medida Provisória que aumenta a fiscalização sobre aqueles que recebem esse benefício. Já as empresas, principais responsáveis por esse prejuízo, continuam sem pagar pelo que causam. E sem que o governo reforce o controle sobre a sonegação.
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