Topo

Leonardo Sakamoto

Michel Temer deveria democratizar a chicotada e não bater apenas nos pobres

Leonardo Sakamoto

28/08/2016 10h33

O aumento da destinação de recursos em educação e saúde tem ocorrido acima da inflação nas últimas décadas – em parte para responder às demandas sociais presentes na Constituição de 1988 e, consequentemente, tentar reduzir o imenso abismo social do país.

É questão de matemática. Se fosse apenas pela inflação, anualmente teríamos apenas um reajuste de custos e o tamanho da oferta de serviços não cresceria, permanecendo tudo como está. Se fossemos um país desenvolvido, vá lá, apenas administraríamos o que existe. Mas desconfio que estamos longe disso.

Se a qualidade do serviço público segue insuficiente para a garantia da dignidade da população, imagine quando novos  investimentos forem cortados. Será um salto no sentido de cristalizar o andar de baixo como um local onde a vida não vale nada.

E essa é uma das principais propostas defendidas pelo governo Michel Temer no Congresso Nacional, a fim de economizar os gastos públicos. Áreas como educação e saúde são duas que mais vão sofrer com a medida – hoje, ambas são atreladas a uma porcentagem do orçamento (o montante da saúde, em nível federal, cresce baseado na variação do PIB, e o da educação, deve ser de, pelo menos, 18% da receita).

Como o governo está propondo um teto para a evolução das despesas públicas baseado na variação da inflação (ou seja, sem crescimento real), precisará restringir o que é gasto nessas áreas pois não poderá cortar de outros lados protegidos, como o salário e verba de custeio de deputados federais, senadores, ministros e presidente.

De acordo com reportagem de Angela Pinho, na Folha de S.Paulo, deste domingo (28), o governo Temer suspendeu a matrícula para novas turmas de alunos do programa Brasil Alfabetizado, destinado ao letramento de jovens e adultos. Ao todo, 13 milhões não sabem decifrar um bilhete simples no país – o equivalente a 8,3% da população com 15 anos ou mais.

Ninguém nega que o déficit público precisa ser equacionado e que soluções amargas devem ser propostas e discutidas.

Mas, como venho dizendo aqui, o governo Temer demonstra um carinho grande com o andar de cima ao propor uma medida que limitará gastos com educação e saúde – que afeta a xepa – e evitar as que tirem uma pequena lasca dos mais ricos.

Por exemplo, a volta da taxação de dividendos recebidos de empresas e uma alteração decente na tabela do Imposto de Renda (criando novas alíquotas para cobrar mais de quem ganha mais e isentando a maior parte da classe média). Isso sem falar na regulamentação de um imposto sobre grandes fortunas e um aumento na taxação de grandes heranças (seguindo o modelo norte-americano ou europeu). Não resolvem os problemas, mas sinalizaria algo importante.

Entendo que este grande barco chamado Brasil é transatlântico de passageiros, com divisões de diferentes classes, com os mais ricos tendo mais conforto em suas cabines. Não estou propondo uma revolução imediata para que cabines deixem de existir – apesar de ser uma maravilhosa utopia. O ideal, pra já, seria que as cabines de terceira classe contassem com a garantia de um mínimo de dignidade e as de primeira classe pagassem passagem proporcional à sua renda. E que, ao contrário do Titanic, houvesse botes salva-vidas para todos e não apenas aos mais ricos.

Na prática, contudo, seguimos sendo um navio que carrega escravos, como vem se provando, com parte dos passageiros chicoteando a outra parte. Afinal, o governo (ainda) interino ao invés de buscar medidas que amortecessem o sofrimentos dos mais pobres, que são os que mais sentem uma crise econômica, tenta preservar os mais ricos e as associações empresariais que os colocaram lá. Esquece (ou ignora) que democratizar a chicotada também é por uma questão de justiça social.

E, depois de consolidado o impeachment, teremos ainda Reforma da Previdência Social (com a implantação de idade mínima de 65 anos para homens, quando a expectativa de vida do maranhense, por exemplo, é de 66) e a reforma da CLT (carteira de trabalho vai ser uma ficção tão instigante quanto Harry Potter).

Já passamos da hora de rediscutir esse sistema que, em todos os momentos, de crise ou de bonança, faz com que os muito ricos sejam poupados, enquanto os mais pobres virem geleia.

O que será muito difícil, pois são os representantes dos muito ricos que fazem geleia dos muito pobres.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.