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Leonardo Sakamoto

Distribuir riqueza é "ideológico". E chicotear trabalhador, não?

Leonardo Sakamoto

30/08/2016 19h43

Em um evento empresarial, um palestrante reclamou que há atores sociais infelizmente guiados por ideologias ao invés da razão – no que foi largamente aplaudido. Reclamava dos direitos trabalhistas que, de acordo com o Dicionário Brasileiro de Mentiras, Paias e Cascatas, são os reais vilões pelo não crescimento da economia.

Juro que demorei horrores para entender se ele estava falando sério ou tirando com a cara da plateia. Afinal de contas, se o liberalismo econômico não é ideologia então o Coelho da Páscoa realmente existe.

Se alguém vai a público defender distribuição de riquezas é, hoje, tratado como lunático, processado como incitador de violência, preso como subversivo. Afinal, está tentando acabar com a ordem estabelecida e pulverizar direitos garantidos. Tachado de "ideológico", é relegado à latrina da sociedade.

O contrário, contudo, é visto como uma surpreendente normalidade, como algo "natural" ou "lógico".

Não existe posicionamento sem ideologia. Nossa ideologia vai conosco para toda parte. Essa matriz de interpretação do mundo que abraçamos, consciente ou inconscientemente, diz muito sobre como vemos os fatos e o que eles significam para nós e para os outros.

Como disse Paulo Freire, tudo tem base ideológica. Somos guiados por conjuntos de ideias e adotamos diferentes formas de interpretar os fatos do mundo. O importante é saber se a nossa base é includente ou excludente. Ou seja: se quer que mais seres humanos aproveitem da mesma dignidade ou que respeito que desejamos para nós mesmos ou que a própria ideia de direitos seja um produto disponível para poucos.

Ao mesmo tempo, o "bom senso" não é neutro. Pelo contrário, é construído. Uma ação ou um comportamento visto como naturais ou lógicos são, na verdade, a resultante de uma série de disputas simbólicas no seio de uma sociedade. Com o tempo, a lembrança dessas batalhas se esvai ficando apenas o seu resultado: uma ideia largamente aceita e pouco questionada.

Felizmente, isso não é imutável e varia de acordo com o tempo e a sociedade em que se vive. O bom senso já justificou queimar hereges na fogueira, a escravidão de índios e negros, o impedimento ao voto feminino e a proibição de casais do mesmo sexo de terem os mesmos direitos dos héteros. Até que, com muito sacrifício, o bom senso passou a ser visto como preconceito ou, mais objetivamente, como a forma de uma classe dominante impor seus ideais ao resto da xepa.

Aliás, não há discurso mais ideológico do que aquele que diz que não possui ideologia. Ao tentar naturalizar relações sociais, culturais e econômicas como se fossem "naturais" ou "lógicas" ele está construindo, na verdade, uma complexa rede de estruturas.

O neoliberalismo é craque em se afirmar neutro quando, na verdade, não é. Em dizer que é lógico e natural cortar direitos de trabalhadores, impor limites para o crescimento de gastos públicos em educação e saúde, implantar uma idade mínima alta para a aposentadoria. E depois vêm representantes de empresários dizer que isso não é ideológico? Estão querendo enganar a quem? O já citado Coelho da Páscoa?

Para que alguém continue ganhando e alguém continue perdendo. Para que todos achem isso normal. Ou, no limite, para que você seja tão bem doutrinado que se torne um cão de guarda daquele que te explora.

Em tempos difíceis economicamente, saídas que rifam direitos dos mais pobres e preservam os dos mais ricos (que tal aumentar impostos e taxar dividendos?) são vendidas como a única alternativa para preservar a qualidade de vida de muitos. Quando elas, por sua própria natureza, significam a proteção de poucos.

Uma discussão ampla e que envolva todos ao invés de medidas tomadas de cima para baixo seria um ato sensato.

Mas tenho visto muita TV Senado. E acho que a sensatez anda sumida por aqui.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.