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Leonardo Sakamoto

"Somos um governo cidadão", diz Temer. Repetir a mentira até virar verdade?

Leonardo Sakamoto

14/09/2016 15h11

Michel Temer, inconformado com as críticas que seu governo vem sofrendo por conta das propostas e balões de ensaio sobre mudanças nos direitos sociais, trabalhistas e previdenciários, desabafou, em discurso, nesta quarta (14): "É desagradável de imaginar que nós somos um governo cidadão que, com o perdão da palavra, tão estupidificado, tão idiota que chega ao poder para restringir os direitos dos trabalhadores, para acabar com saúde, para acabar com educação".

Algumas considerações:

Não sei qual o dicionário utilizado por Michel, mas sob que definição seu governo pode ser considerado "cidadão"? Olhei em vários e, com exceções de alguns bons profissionais que se esforçam nesse sentido, não dá para dizer que isso se encaixa.

Na representatividade de seu ministério? Acho que não, pois, apenas nesta quarta, com a posse de Grace Mendonça como advogada-geral da União, o governo deixou de ser um clube de 100% homens brancos.

Muitos menos pela prioridade dada ao tema, uma vez que o ministério dos Direitos Humanos foi rebaixado a uma pasta do Ministério da Justiça e a área de Cultura só não teve o mesmo fim porque um rebu de proporções nacionais ocupou e resistiu.

Sobre o "estupidificado" e "idiota": é ele mesmo quem está dizendo isso, não nós.

Achei deliciosa a expressão "chega ao poder". Tão pró-ativa, tão cheia de energia e vontade, tão protagonista de um processo!

Você pode achar que Dilma Rousseff faz um péssimo mandato e é responsável pela terrível situação econômica do país, como eu acho. E considerar que o que ocorreu foi impeachment, golpe ou mousse de maracujá. Mas a articulação conduzida pelo então vice Michel Temer para a destituição da presidente do seu cargo, com a ajuda de Eduardo Cunha e do que há de mais bizarro no Congresso Nacional, tem rabo, orelha e focinho de conspiração. Afinal, um vice deveria ficar no seu canto, como fez Itamar Franco na época de Collor, e esperar, em silêncio, o desfecho. E não trabalhar abertamente para ficar com o Palácio do Planalto.

Pelo menos, aqui e ali, os atos falhos de Michel demonstram que ele é gente que faz e suou a camisa pelo direito se sentar na cadeira para o qual não foi eleito.

Por fim, ele reclama que não chegou lá para para restringir direitos dos trabalhadores. Fascinante. Pois se há uma razão para ele ter tido apoio de uma parcela significativa do empresariado nacional é exatamente essa: aplicar mudanças profundas na CLT e nas aposentadorias do INSS.

Qual o outro nome que pode ser dado a mudar a lei para permitir que empreendimentos economizem demitindo empregados contratados conforme regime CLT e terceirizem sua força de trabalho, seja com profissionais que possuem suas próprias empresas individuais e não contam com os mesmos direitos, apesar de baterem ponto todos os dias (os chamados PJs), seja com cooperativas ou empresas menores que, não raro, contratam trabalhadores de forma precária e sem os mesmos direitos.

Ou que se nome dá à proposta que permitirá que acordos coletivos negociados entre patrões e empregados prevaleçam sobre a legislação trabalhista, mesmo que isso signifique perdas para os trabalhadores. Quando um sindicato tem força e capacidade de organização, ele consegue negociar com empresas ou setores e garantir boas condições para uma categoria. Contudo, quando ele é pequeno e inexpressivo ou está mais preocupado com a cobrança de contribuições do que com a promoção dos direitos e da defesa dos trabalhadores, o que puder ser flexibilizado pelos empregadores será flexibilizado.

Essas propostas são, na prática, um jogo de soma zero. Ou seja, para alguém ganhar, outro precisa perder. Quando alguém promete uma reforma trabalhista sem tirar direitos dos trabalhadores, irá provavelmente seguir por uma dessas três opções: a) mudar a CLT e acrescentar direitos aos trabalhadores e tirar dos empresários; b) desenvolver um novo conceito do que seja um direito trabalhista; ou c) operar um milagre.

Michel não é santo. Mas como ele se comparou ao imperador europeu Carlos Magno, que foi beatificado (passo anterior à canonização) pela Igreja Católica, pode ser que ele consiga. E, com isso, acendendo uma vela ao capital, vire santo.

Parte do empresariado que apoiou o impeachment quer um ambiente de negócios mais "amigável" ao crescimento econômico, sem subir impostos ou morder seus lucros. Com isso, a precarização de direitos dos trabalhadores está posta na mesa como alternativa.

Algumas das forças políticas que dão sustentação ao governo Michel Temer estão pressionando por mais "flexibilidade", menos regulação estatal, menos intervenção do Estado e mais liberdade entre as partes, patrões e empregados, na hora de contratar. Mudanças são bem vindas se podem melhorar a vida de ambos os lados, mas devem ser discutidas e evitadas se fragilizam ainda mais os mais fracos.

E o que tem se visto até agora é que é a xepa que vai levar surra de toalha molhada no lombo.

Por fim, sobre educação e saúde. Ninguém disse que o governo quer "acabar" com elas. Pelo menos, não diretamente.

A imposição de um limite do reajuste inflacionário ao crescimento dos gastos correntes, como o governo deseja, vai sim reverberar nessas áreas, impedindo novos investimentos para melhorar a qualidade do serviço prestado e seu alcance.

O ministro da Saúde, Ricardo Barros, contudo, tem a solução para isso: a criação de um "plano de saúde popular" privado, beneficiando as empresas do setor, ao invés de melhorar o sistema público de saúde. Isso sem contar que pipocam aqui e ali no Congresso Nacional discussões para possibilitar a cobrança de mensalidade em instituições públicas de ensino de nível superior.

Rebaixar a qualidade do SUS ou das universidade públicas é um caminho visando à sua privatização ou seu desmantelamento. Daí, sim, acabando com ambos.

As técnicas utilizadas para convencer a população no processo de impeachment tendem a não funcionar com a mesma efetividade quando o assunto é aquele mínimo de direitos que os mais pobres conquistaram através da Constituição Federal de 1988 e não querem abrir mão.

Não porque não entendem que o país precisa crescer e todos têm que dar sua cota de sacrifícios Mas porque, se abrirem mão, morrem.

Portanto, ao invés de dar piti e ter siricutico, Michel Temer deveria entender que encontrará resistência- e nada mais democrático que isso. E que parte da fatura prometida não poderá ser entregue.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.