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Leonardo Sakamoto

Juiz ignora Convenção da ONU sobre Tortura ao autorizar ação contra alunos

Leonardo Sakamoto

01/11/2016 20h06

O juiz Alex Costa de Oliveira, da Vara da Infância e Juventude do Distrito Federal, autorizou a polícia militar a adotar medidas que privem o sono, impeçam a alimentação, cortem a luz e isolem estudantes que ocupam o Centro de Ensino Asa Branca de Taguatinga desde a quinta (27). Eles protestam contra a proposta de emenda constitucional 55/2016 (antiga PEC 241), que limita o crescimento de gastos públicos, o que deve impactar áreas como educação e saúde.

Segundo reportagem de Jéssica Nascimento, do UOL, isso deve ser usado como "forma de auxiliar no convencimento à desocupação das escolas".

"Autorizo, ainda, o uso de instrumentos sonoros contínuos, direcionados ao local da ocupação, para impedir o período de sono. Tais autorizações ficam mantidas independentemente da presença de menores no local, os quais, a bem da verdade, não podem lá permanecer desacompanhados de seus responsáveis legais", escreveu o juiz na decisão.

O juiz, com isso, conseguiu ir contra duas convenções internacionais ratificadas pelo Brasil – que pode ser responsabilizado por isso, e contra a própria lei brasileira – que ele, como magistrado, deveria conhecer. Os negritos no texto são meus:

1) Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Crueis, Desumanos ou Degradantes

Uma das mais relevantes na área de direitos humanos da ONU, define assim tortura em seu artigo 1o:

"Para fins da presente Convenção, o termo "tortura" designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam conseqüência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram.

2) Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura

A convenção, da Organização dos Estados Americanos, define tortura em seu artigo 2o:

"Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por tortura todo ato pelo qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio de intimidação, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou com qualquer outro fim. Entender-se-á também como tortura a aplicação, sobre uma pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou angústia psíquica. Não estarão compreendidos no conceito de tortura as penas ou sofrimentos físicos ou mentais que sejam unicamente conseqüência de medidas legais ou inerentes a elas, contanto que não incluam a realização dos atos ou a aplicação dos métodos a que se refere este artigo.

3) Lei 9.455/1997 – Define o crime de tortura e dá outras providências

Seguem trechos da legislação nacional sobre o tema:

Artigo 1º Constitui crime de tortura:

I – constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:
a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;
b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
c) em razão de discriminação racial ou religiosa;
II – submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

Pena – reclusão, de dois a oito anos.

§ 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal.
§ 2º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de
detenção de um a quatro anos.

§ 3º Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de reclusão de quatro a dez anos; se resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis anos.

§ 4º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço:
I – se o crime é cometido por agente público;
II – se o crime é cometido contra criança, gestante, portador de deficiência, adolescente ou maior de 60 (sessenta) anos

III – se o crime é cometido mediante seqüestro.

Considerando que as convenções ratificadas pelo Brasil têm valor de lei, não se pode alegar falta de legislação para questionar a decisão do magistrado. Mas espero, sinceramente, que ele desconheça as três para que, assim, a sua decisão tenha uma justificativa.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.