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Leonardo Sakamoto

Brasil é condenado no âmbito da OEA em caso de trabalho escravo

Leonardo Sakamoto

15/12/2016 19h11

O Estado brasileiro foi considerado responsável pela violação ao direito de não ser submetido à escravidão e ao tráfico de pessoas por conta de 85 trabalhadores resgatados da fazenda Brasil Verde, no Pará, no ano 2000. O caso é o primeiro a ser denunciado e decidido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos – órgão jurisdicional da Organização dos Estados Americanos (OEA), responsável por fiscalizar se os países cumprem as obrigações previstas nos tratados continentais nessa área.

Dessa forma, o Brasil se torna o primeiro país a ser condenado por escravidão contemporânea pela Corte. Isso pode abrir um precedente para outros casos que apareçam para serem analisados. A sentença, proferida pelo juízes vindos de países membros da OEA em outubro, foi divulgada nesta quinta (15).

Leia a sentença do caso Brasil Verde, clicando aqui. 

De acordo com comunicado da Corte, em março de 2000, dois jovens conseguiram escapar da fazenda e, após denunciarem a situação em que se encontravam, o Ministério do Trabalho organizou uma fiscalização que resgatou outros trabalhadores.

"O relatório da fiscalização indicou que eles se encontravam em situação de escravidão. Os trabalhadores foram aliciados por um 'gato' [contratador de mão de obra a serviço de empresas e fazendeiros] nos locais mais pobres do país e viajaram durante dias em ônibus, trem e caminhão até chegarem à Fazenda. Suas carteiras de trabalho foram confiscadas e assinaram documentos em branco. As jornadas de trabalho eram de 12 horas ou mais, com um descanso de meia hora para almoçar e apenas um dia livre por semana. Na Fazenda, eles dormiam em galpões com dezenas de trabalhadores em redes, sem eletricidade, camas ou armários. A alimentação era insuficiente, de péssima qualidade e descontada de seus salários. Eles se adoentavam com regularidade e não recebiam atenção médica. O trabalho era realizado sob ordens, ameaças e vigilância armada." Esses fatos aconteceram quando a Brasil Verde estava sob propriedade de João Quagliato.

O Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil) e a Comissão Pastoral da Terra levaram o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), outra instituição do sistema interamericano de direitos humanos, que tentou uma negociação com o Estado brasileiro entre 2012 e 2014. Mas como um acordo entre as partes não foi possível, a Comissão acabou considerando que o Brasil foi responsável pelo ocorrido e levou o caso à Corte Interamericana em 2015. Durante o julgamento, este jornalista foi convidado pela Corte, após solicitação das duas organizações sociais, para oferecer aos juízes um panorama da situação atual do trabalho escravo e do tráfico de pessoas no Brasil.

Frei Xavier Plassat, coordenador da campanha nacional de combate à escravidão da Comissão Pastoral da Terra, afirmou, nesta quinta a este blog que "o caso Brasil Verde revelou a incapacidade do Estado brasileiro de enfrentar, na sua integralidade, o problema do trabalho escravo".

"Foi dado um tempo grande para poder negociar elementos de um acordo que, infelizmente, o Estado não assumiu. É lamentável ter que chegar a uma sentença condenatória para garantir que a luta contra o trabalho escravo seja estimulada a continuar. Nossa expectativa é que, na conjuntura politica em que ocorre essa sentença, o Brasil se lembre que está sendo monitorado pela comunidade internacional para que não deixe de ser uma referência mundial no combate ao trabalho escravo", completa.

Xavier refere-se ao fato de que a Organização Internacional do Trabalho e outras agências das Nações Unidas consideram o sistema de combate ao trabalho escravo no Brasil, que resgatou mais de 50 mil pessoas desde sua criação, em 1995, uma referência internacional.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos considerou que o conceito de escravidão e suas formas análogas evoluiu e não se limita à propriedade sobre uma pessoa. Segundo o comunicado, o Estado brasileiro não demonstrou ter adotado medidas específicas ou atuou com a devida diligência para prevenir a forma contemporânea de escravidão à qual foram submetidas estas pessoas, nem para por fim a essa situação. Segundo ela, o descumprimento de seu dever de garantia é sério quando se leva em consideração o seu conhecimento sobre o contexto e a particular situação de vulnerabilidade dos trabalhadores.

De acordo com a Corte, nenhum dos procedimentos legais no Brasil determinou qualquer tipo de responsabilidade, nem serviu para obter reparação para as vítimas ou chegou a estudar a fundo as violações denunciadas. Nosso país decidiu aplicar a prescrição a esses processos, apesar do caráter imprescritível desse delito de acordo com o Direito Internacional. Para a Corte a falta de ação e de sanção destes fatos se deve à normalização das condições às quais as pessoas com determinadas características nos estados mais pobres do país eram submetidas. Portanto, considerou que o Estado havia violado o direito de acesso à justiça das 85 vítimas, e também de outros 43 trabalhadores que foram resgatados em 1997 na mesma fazenda, e que também não receberam uma proteção judicial adequada.

Beatriz Affonso, diretora do do Cejil no Brasil, afirmou, em nota, que "a decisão do tribunal é emblemática porque cria um precedente importante ao declarar o caráter imprescritível do delito de escravidão segundo as normas do direito internacional, por entender que a aplicação da prescrição constitui um obstáculo para a investigação dos fatos, para a determinação e punição dos responsáveis e para a reparação das vítimas".

A Corte ordenou diversas medidas de reparação, entre as quais reiniciar as investigações sobre o caso, adotar as medidas necessárias para garantir que a prescrição não seja aplicada ao delito de direito internacional de escravidão e suas formas análogas e pagar as indenizações correspondentes aos trabalhadores.

O jurista brasileiro Roberto Caldas, atual presidente da Corte Interamericana dos Direitos Humanos, não participou do julgamento em conformidade com os regulamentos do órgão.

Posição do governo brasileiro – Em nota enviada a este blog, a Secretaria Especial de Direitos Humanos do governo federal afirmou que reconhece a condenação no caso da fazenda Brasil Verde e que entende a Corte Interamericana de Direitos Humanos como legítimo intérprete da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, exercendo um "papel de grande relevância na proteção dos direitos humanos na região".

"Consideramos que a sentença da Corte IDH, não obstante condenatória ao Estado brasileiro, representa uma oportunidade para reforçar e aprimorar a política nacional de enfrentamento ao trabalho escravo, especialmente no que se refere à manutenção do conceito, assim como em relação à investigação, processamento e punição dos responsáveis pelo delito", afirma a Secretaria.

"É louvável o reconhecimento pela Corte da eficácia das políticas públicas de combate ao trabalho escravo no país. Para a Secretaria Especial de Direitos Humanos, a sentença poderá catalisar esforços para a manutenção do conceito contido na normativa nacional e o aprimoramento da política de prevenção e erradicação do trabalho escravo."

A nota também afirma que a Secretaria celebra a interpretação da Corte de que a proibição da escravidão representa uma norma imperativa de Direito Internacional e implica obrigações ao Estado. E lembra que, no dia 13 de dezembro último, foi lançado o "Pacto Federativo para a Erradicação do Trabalho Escravo", com a adesão inicial de Alagoas, Bahia, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Paraíba, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Rondônia e Tocantins.

"Assim, consideramos que a recente sentença da Corte IDH representa mais um componente a fortalecer os esforços na eterna luta pela efetivação dos direitos humanos, em especial para o enfrentamento ao trabalho escravo e a reparação adequada às vítimas desse crime", conclui.

Post atualizado às 13h30 do dia 16/12/2016 para inserir o posicionamento do governo brasileiro.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.