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Leonardo Sakamoto

Nos EUA e no Brasil, o "mal" são sempre os outros. Nunca nós mesmos

Leonardo Sakamoto

04/02/2017 08h44

"Nós devemos manter o 'mal' fora de nosso país!"

Donald Trump respondeu dessa forma, em sua conta no Twitter, a uma decisão do Tribunal Federal de Seattle que suspendeu temporariamente o seu decreto impedindo a entrada de pessoas de sete países de maioria islâmica nos Estados Unidos. A Casa Branca está recorrendo.

A ideia de "mal" usada por ele tem significados que se desdobram: A princípio representa o terrorismo de algumas organizações que ele afirma tentar evitar – apesar de nenhuma pessoa dos sete países barrados ter cometido atentados nos EUA. Mas ao baixar uma proibição indiscriminada a todos os cidadãos desses países, Trump os torna suspeitos simplesmente porque foram proibidos de entrar. E a percepção do que seja o "mal" se estende, metonimicamente, aos inocentes. É a tática do linchamento: se adoto uma punição contra você é porque você fez algo errado.

Mesmo que isso esteja longe de corresponder à realidade. Como a pesquisa Mayra Cotta já mostrou em artigo neste blog, 64% dos ataques com armas em espaços públicos nos Estados Unidos foram causados por homens brancos que nasceram naquele país. Homens brancos, frequentemente supremacistas brancos, que entraram armados com sua ideologia racista em jardins de infância, escolas, universidades, cinemas, igrejas, repartições e escritórios e começaram a matar as pessoas ao se redor, sem necessariamente um alvo específico. Esses assassinos não costumam ser chamados de terroristas, mas pessoas com transtorno mental ou psiquiátrico.

E Trump não se refere a eles como o "mal". Até porque seria muito difícil explicar a seus eleitores – pelo menos os que buscam soluções fáceis para o medo que sentem – que parte da violência em seu país está ligada a desvios e questões mal resolvidas de sua própria sociedade. Como o racismo que segue sendo uma chaga aberta, tornando, mais de 150 após a abolição da escravidão por lá, necessária uma campanha a fim de deixar claro que "black lives matter" – vidas negras importam.

Ou as intervenções militares norte-americanas em outras sociedades que, sob a justificativa de garantir o respeito aos direitos humanos, criam montanhas de cadáveres e fluxos de refugiados para, ao final, sair com vantajosos contratos para extração de petróleo e de recursos naturais e exploração de mercados consumidores. Em maior ou menos grau, esse é o modus operandi de sucessivas administrações norte-americanas, como a festejada e já saudosa gestão Obama.

O problema de Trump é que ele escancara isso sem mediações e estica a corda, ultrapassando o limite da racionalidade e atingindo pilares da democracia. E, num cálculo racional, ao eleger inimigos (mexicanos ladrões e estupradores, muçulmanos terroristas, chineses desleais…) e afirmar que eles apodrecendo a sua sociedade, transfere o problema para terceiros e enfraquece a possibilidade de reflexão sobre os problemas causados pelo país e sua elite dominante. O "mal" é o outro, o islâmico, o que acredita em algo diferente de nós, nunca nós mesmos. E, como resultado, obtém apoio de seus eleitores para limitar os próprios direitos e aumentar seu controle sobre eles.

Ou, traduzindo para o pensamento binário:

É muçulmano, é terrorista.
Terrorista, quem vem de fora.
Vem de fora, como os mexicanos.
Mexicanos? Estupradores e ladrões.
Ladrões? Como os chineses.
Chineses? Provocam o mal.
E o mal – que nunca virá do homem branco, apesar das evidências – precisa ser extirpado.

Tinha escrito isso, abaixo, para o Brasil. Acho que vale retomar nesse momento. Até porque o Grande Irmão do Norte e o Paraíso Tropical do Sul estão, pau a pau, na corrida do ódio. Que, nessa toada, inevitavelmente, os consumirá.

De esquerda? É comunista.
Comunista? É do PT.
Do PT? É bandido.
Bandido? Bora linchar!
Foi linchado? Era vagabundo.
Vagabundo? Ora, sem-teto!
Sem-teto? Igual sem-terra.
Sem-terra? É preguiçoso.
Preguiçoso? O maconheiro.
Usa maconha? Então, crack.
Fuma crack? É um lixo.
Quem é lixo? Os "mendigos"
"Mendigo"? Não trabalha.
Não trabalha? Coisa de índio.
É índio? Que fique na floresta.
E a floresta? Bora desmatar.
Desmatar? Sinal de progresso.
Progresso?

Progresso é um corpo de um jovem negro e pobre da periferia estendido no chão para garantir a tranquilidade dos "homens de bem".

"Homem de bem"? Casa com "mulher honesta"
"Mulher honesta"? Não anda sozinha.
Sozinha na balada? Quer sexo.
Não quer sexo? Feminazi.
Feministas? Querem o fim da família.
Fim da família? A "Ideologia de gênero"!
"Ideologia de gênero"? Ensinar a ser gay.
Gays? São abominações para Deus.
Não crê em Deus? É do mal.

E o mal precisa ser extirpado para o bem da sociedade.

O que é sociedade? Somos nós.
Está contra nós? Não é patriota.
Não é patriota? É um inimigo do país.
Não ama o país? Então, deixe-o.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.