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Leonardo Sakamoto

Odebrecht diz que é o otário do governo. Bobagem. Otários somos nós

Leonardo Sakamoto

02/03/2017 18h13

"Eu era o otário do governo. Era o bobo da corte do governo." A resposta de Marcelo Odebrecht dada a Herman Benjamin, relator da ação no Tribunal Superior Eleitoral que investiga a chapa Dilma Rousseff e Michel Temer nas eleições de 2014, tenta despistar uma verdade. Ele pode não dar ordens ao governo, como questionado, ou "não ser dono do governo", como mesmo disse. Mas faz parte do grupo que dá ordens e que é dono.

Esse grupo se espalha por diferentes setores econômicos e regiões do país. Ajuda a eleger e a derrubar presidentes. Faz de magistrados heróis para depois os transformarem em vilões, sempre de acordo com suas conveniências. Manipula a edição de debates eleitorais e infla patos de borracha na TV, trancando avenidas e prendendo atenções do público para a sua causa. Financia (e, se tudo correr como querem, voltará a financiar) campanhas de adversários com o mesmo montante de recursos para que, independentemente de quem vença, eles sejam os reais ganhadores.

Esse grupo não tem um líder específico, não possui bandeira ou estatuto, não possui religião, não conta com sede própria ou endereço para correspondência. Ninguém é convidado a fazer parte dele, mas os que dele fazem parte sabem bem onde estão e o que devem defender para a sobrevivência de seu grupo.

O clã Odebrecht pode cair, entre outros. Mas esse grupo continuará reinando. Neste momento, por exemplo, ele empurra goela abaixo da sociedade uma Reforma da Previdência que fará com que os trabalhadores de regiões mais pobres, com menor expectativa de vida e que começaram a trabalhar mais cedo, morram antes de se aposentar. E uma Reforma Trabalhista que pode levar ao aumento de jornadas sem o pagamento das devidas horas extras. Ou mesmo a redução da proteção do trabalhador através da ampliação da terceirização legal para todas as atividades de uma empresa, como proposto no PL 4302/1998, já aprovado no Senado Federal e que, agora ressuscitado, será apreciado pela Câmara dos Deputados.

A histórica incompetência, leniência ou má fé do poder público (do PSDB, passando pelo PT até chegar ao PMDB) quanto ao setor de construção civil tem comprometido a dignidade de trabalhadores na construção de casas, apartamentos e centros empresariais.

Trabalho escravo contemporâneo já foi encontrado no "Minha Casa, Minha Vida", do governo federal, e em obras da CDHU, do governo paulista. E indo além da escravidão, a situação dos trabalhadores na construção civil segue muito ruim. Para refrescar a memória: lembram de dez operários mortos no desabamento de um prédio no bairro de São Mateus, em São Paulo? E do jovem de 16 anos que morreu soterrado em uma obra no Cambuci, também na capital paulista? E dos nove operários que morreram em um canteiro de obras, em Salvador, quando o elevador em que estavam despencou de uma altura de 65 metros? E das mortes na construção de usinas hidrelétricas, como de Belo Monte? E dos operários que perderam a vida nas obras dos estádios como os do Corinthians e do Palmeiras, entre outros? Isso só para citar alguns.

Copa do Mundo, Olimpíadas, Programa de Aceleração do Crescimento. O governo brasileiro injetou bilhões no setor da construção civil. É claro que tudo isso significou mais geração de empregos em um setor que contrata milhões. Mas produzir em quantidade e rapidamente, por vezes, significou passar por cima da garantia de saúde e de segurança para tanto.

Durante o governo do PT, o Palácio do Planalto reclamou do excesso de fiscalização, que trava as obras e faz com que o Brasil cresça mais devagar, momento em que foi aplaudido por parte do empresariado.

Daí a pergunta: quem era o monarca que aplaudia e quem era o bobo que fazia a graça?

Ao mesmo tempo, sucessivos ocupantes no Palácio do Planalto assistiram a redução no quadro de auditores fiscais do trabalho, funcionários públicos capazes de verificar as condições de canteiros de obras espalhados pelo país. Segundo o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho, para repor o que havia na década de 90, o Brasil precisaria mais que dobrar a quantidade de fiscais.

Sabe quando isso vai acontecer num país em que o empresariado bate palmas quando o governo critica fiscalização? No momento em que marreta criar asas.

Por fim, usamos a expressão "bobo da corte" pelo seu significado do palhaço que serve para entreter os poderosos. Mas esquecemos que muitos dos bobos que serviam a reis e rainhas na Idade Média europeia eram os únicos funcionários da monarquia com liberdade para criticá-la publicamente e saírem ilesos.

A acidez da sinceridade e a loucura da galhofa, que andavam de mãos dadas sob a tutela de um bobo, transformavam-no em um lampejo de racionalidade que podia ser útil ao governante – mesmo que ele não se desse conta disso.

Parte da elite política ou burocrática que se beneficia dessa relação incestuosa do grande capital com o Estado até sente um comichãozinho de prazer na virilha quando ouve o Príncipe da Odebrecht mentir que ele, um bilionário, fazia o papel do bobo, ou seja, de um reles funcionário da corte. Uma sensação falsa de poder.

A Marcelo caberia a crítica e talvez a denúncia, mas preferiu o silêncio. Por quê?

Porque o reino é deles. E, tal qual na Idade Média, o povão é que faz o real papel de idiota na história.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.