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Leonardo Sakamoto

Deputado diz que Mickey e Rei Leão são gays. Sabe o que é isso? Medo

Leonardo Sakamoto

18/03/2017 13h34

"Se você fizer um estudo profundo como eu já fiz, ele [Mickey Mouse] é homossexual. As pessoas estão enganadas com essa mensagem subliminar que a Disney está passando para a sociedade, principalmente às nossas crianças." A entrevista dada pelo deputado federal Victório Galli (PSC-MT) a Paulo Coelho, da Rádio Capital, de Cuiabá, viralizou.

"O próprio nome dele em relação aos exemplos que fazem, as cores, assim por diante, você vê uma mensagem subliminar que ele está fazendo uma apologia e apoiando a questão gay", afirma o deputado.

Provocado pelo jornalista, ele continuou: "Infelizmente outro filme em que os personagens transmitem mensagem em relação ao homossexualismo é aquele desenho animado do leão, o Rei Leão. Na realidade é outra mensagem que transmite a apologia ao 'gayismo'. É na questão que o rei leão deveria ser um animal feroz, de transmitir respeito aos outros animais, ele se torna um animalzinho frágil, que carece de proteção dos outros", insiste o deputado.

É reconhecida a capacidade de certos deputados da bancada do fundamentalismo religioso no Congresso Nacional, num macarthismo identitário e sexual, enxergarem homossexuais e transexuais em tudo – do pote de arroz, passando pelo estepe do carro até chegar à catraca dos ônibus. Como sempre diz um amigo, alguém precisa ajustar o radar gay desse povo.

Mas há outro problema que passa despercebido. Parafraseando, Dilma Rousseff (2013), sempre que você olha um fundamentalista religioso cristão, há sempre uma figura oculta, que é um personagem de história em quadrinhos atrás, o que é algo muito importante. Sim, há uma tara incompreendida desse grupo social por gibis e graphic novels.

Os fundamentalistas dizem que estão revelando os valores deturpados que a mídia quer incutir na cabeça das crianças no Brasil.

(Mas não os vejo falando mal de comerciais de bancos apesar de Levítico 25:37 ser bem claro quanto a quem não aplica juros zero: "Não lhe darás teu dinheiro com usura, nem darás do teu alimento por interesse". Até porque a falta de fundos de investimento levaria a certas igrejas não rentabilizarem em cima  do dinheiro dos fieis para o proveito de seus líderes.)

Nao vejo problema algum se Mickey e Simba forem gays. Mas por que parar aqui? O deputado poderia ter ido além. Vamos banir o Super-Homem, pois homem que é homem não usa colã azul e sunga por cima da calça. E, é claro, o Batman – fruto da ausência de figura paterna em sua criação e em uma relação estável com Robin. E a Mulher-Maravilha, ícone do empoderamento feminino, o que é um risco para a estrutura das famílias de bem que têm o pai como chefe.

Ou Wolverine, por conta do alcoolismo. Deadpool, pela amoralidade. Dr. Estranho, por ser adepto da feitiçaria. Do Coisa por ser personagem masculino, mas sem pênis, exemplo das teorias amaldiçoadas de afirmação de identidade de gênero que ignoram órgãos sexuais. Ou Thor, uma vez que as religiões nórdicas são aberrações diante da palavra de Deus.

E por que não o Pernalonga, que gosta de ser vestir de mulher nos desenho? Ou o Pica-pau, que está sempre doidão e, provavelmente, é usuário de anfetaminas?

Pode ser difícil para o fundamentalismo religioso entender, mas quadrinhos e animações são manifestações artísticas e culturais de um tempo e de um povo. E vão retratar elementos da realidade porque as pessoas querem se ver espelhadas nas virtudes ou nos poderes daqueles personagens que respeitam ou admiram.

À medida em que a sociedade global vai se tornando menos tacanha e mais consciente sobre a percepção do direito à dignidade vão surgindo outros personagens homossexuais, transexuais, com diferentes identidades e orientações de gênero. Ou roteiristas resolvem empurrar para fora do armário tantos outros que já existem. Quer alguns? Meia Noite, Estrela Polar, Starman, Lanterna Verde (Allan Scott).

Algumas coisas ainda são tratadas como "polêmica", quando a Disney mostrou, pela primeira vez em uma animação, uma cena de dois homens se beijando em "Star contra as Forças do Mal". Mas esse susto vai passar também.

Se o mundo caminhar para melhor, teremos mais heróis gays e lésbicas, mas também mais mulheres e homens negros e outros não-brancos, pessoas não norte-americanas ou europeias ou que tenham alguma deficiência. Só quem está alheio à realidade não percebeu a virada no conceito de "princesa", por exemplo, que saiu da Bela Adormecida e chegou em Moana.

Mais do que serem vetores de mudança social, os quadrinhos são reflexo de sua sociedade. E o mercado não é burro. Percebe mudanças sociais, empacota os novos simbolismos e vende como produto, adaptando-se aos novos tempos. A natureza dos dogmas construídos em algumas religiões, por outro lado, não são maleáveis e veem na destruição do diferente e no fomento ao medo a ele suas possibilidades de sobrevivência.

Se dependesse da bancada do fundamentalismo religioso, aliás, o conceito de família ficaria restrito a um pai, uma mãe e filhos e filhas. Rei Leão poderia até ser censurado, dado que Timão, Pumba e Simba seriam acusados de desrespeitar a definição legal de família.

Isso pode parecer uma grande besteira de um deputado que não tem o que fazer. Na verdade, mostra que há tanta gente lutando contra que vai levar mais tempo do que pensamos para que a dignidade deixe de ser peça de ficção e entre na realidade por aqui.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.