Topo

Leonardo Sakamoto

No aniversário do Golpe de 1964, Temer sanciona golpe contra trabalhadores

Leonardo Sakamoto

31/03/2017 21h03

Michel Temer sancionou, nesta sexta (31), a lei que permite a terceirização de qualquer atividade de uma empresa.

O projeto também garante que trabalhadores que levarem um calote só poderão exigir que a empresa-mãe (que contratou a prestadora de serviços para a qual trabalham) arque com a dívida se a Justiça, após um processo, decidir que a terceirizada não tem condições para tanto. O pacote deve dificultar a vida de muita gente.

Optou, dessa forma, por um projeto de 1998 aprovado na Câmara dos Deputados, ignorando outro, mais moderno, que tramita no Senado Federal. A nova lei conta com menos garantias contra fraudes e abre caminho para mais acidentes de trabalho, perda de massa salarial e redução de direitos e benefícios.

Ironicamente, 53 anos depois do golpe militar, Michel Temer, atendendo a pedidos de parte do empresariado nacional e estrangeiro, sanciona uma lei que representa um duro golpe nos direitos dos trabalhadores.

(Há uma disputa sobre a data exata do golpe de 1964. Há quem use o 31 de março, início das movimentações contra o presidente João Goulart – talvez para fugir da vergonha da mentira que foi um Primeiro de Abril contado por 21 anos.)

Muita coisa mudou desde que os militares deixaram o poder, naquela abertura "lenta, gradual e segura". Mas mantivemos modelos de desenvolvimento econômico que dariam orgulho aos maiores planejadores daquele período: de que, para crescer rapidamente e atingir nosso ideal de nação, vale qualquer coisa. Inclusive passar por cima de regras que garantem um mínimo para quem não herda a dignidade mas, pelo contrário, tem que comprá-la diariamente com o suor do próprio rosto.

Promulgada em 5 de outubro de 1988, nossa Constituição Federal, um dos principais marcos da passagem da ditadura para a democracia, não é perfeita. Mas, olhando para trás, é incrível como legisladores conseguiram que o respeito aos direitos mais básicos dos brasileiros estivesse presente no texto final como está. Não temos sido competentes para pôr em prática muita coisa que está lá dentro, seja pela falta de regulamentação, seja pelo não cumprimento da letra escrita. Mas, aí, já é outra história.

Ou seja, o problema da Constituição não é estar ultrapassada. Foi nunca ter sido efetivada.

Temos presenciado Michel Temer, seus ministros, nobres parlamentares, magistrados de altas cortes e parte do empresariado defendendo uma revisão profunda do espírito da Carta Magna para a remoção de determinados "entraves" que impedem o desenvolvimento desta nação. Leia-se como "entraves" os instrumentos para proteger os mais vulneráveis em nome de um suposto "bem-estar" da maioria.

Lobistas sussurram nos corredores do Congresso, cutucam daqui e dali, visando a mudanças que diminuam a proteção ao trabalhador. Outros pressionam pela revisão das regras na área fundiária, reforçando a necessidade de se garantir o direito de propriedade mesmo sem nenhuma função social. Noves fora, grupos religiosos que sonham transformar o país em uma teocracia, proibindo a efetivação de direitos já previstos em 1988.

Como já disse aqui em outro post, o mundo, ainda em choque por conta do fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, produziu a Declaração Universal dos Direitos Humanos três anos depois. O Brasil, saindo da ditadura em 1985, sentou-se para escrever uma Constituição cidadã. É depois de grandes momentos de dor que estamos mais abertos para olhar o futuro e desejar que sofrimento igual nunca mais se repita.

O problema é que, passadas quase três décadas, acabamos nos acostumando. E esquecendo. E banalizando. A ponto de parte de nossas elites política e econômica afirmarem que propostas que golpeiam o espírito da Constituição Federal são mudanças fundamentais.

Em 1988, houve um compromisso de equilíbrio, um pacto político que criou regras de convivência entre grupos e classes sociais. Discute-se, hoje, a necessidade de refazer essa pactuação social. Pergunto-me que tipo de aberração sairia desse debate, considerando que a principal medida, na opinião da Presidência da República, para o país sair do buraco deixado pelo governo anterior é chicotear o lombo dos mais pobres e preservar os mais ricos. Pois, do ponto de vista tributário, o Brasil ainda não é uma democracia, mas uma monarquia absolutista cheia de aristocratas.

A lei que permite a terceirização irrestrita não emenda a Constituição. Contudo, vai contra a sua proposta de sociedade: na qual um Estado de bem-estar social convive com a liberdade econômica. Infelizmente, apenas o segundo projeto parece que vai sobreviver.

Mas também nesta sexta (31), milhares de pessoas foram às ruas em todo o país (70 mil em São Paulo, de acordo com organizadores – a Polícia Militar não divulgou estimativa) para protestar contra a lei que permite a terceirização ampla e a Reforma da Previdência. Os atos, organizados por centrais sindicais e movimentos sociais, fazem parte da preparação a uma greve geral, articulada para o dia 28 de abril.

Temer, que conta com 55% de avaliação de ruim ou péssimo, de acordo com pesquisa Ibope, sancionou a lei no momento em que as manifestações ocorriam. Ou é provocação ou falta de bom senso.

Resistência significa utilizar os meios possíveis e ao alcance de cada um para demonstrar sua insatisfação. Isso ocorre com as elites econômica e social brasileiras, que não se fazem de rogadas ao usar recursos financeiros para fazer valer sua vontade e inflar patos amarelos. Já quando trabalhadores e movimentos sociais prometem resistência, ocupando ruas, avenidas e outros espaços, normalmente a ação é tratada como caso de polícia, como no Brasil do final do século 19 ou da ditadura civil-militar.

Neste caso, resistir não é apenas lutar pelo direito à dignidade.

É também um esforço para que não voltemos ao passado.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.