Topo

Leonardo Sakamoto

Proposta na Câmara pode precarizar as condições de trabalho no campo

Leonardo Sakamoto

03/04/2017 12h10

Prioridade da bancada ruralista, o projeto de lei 6442/2016, do deputado federal Nilson Leitão (PSDB-MT), quer alterar as normas reguladoras do trabalho rural no país e será analisada por uma comissão especial já criada na Câmara dos Deputados. Representantes de trabalhadores afirmam que, entre seus 167 artigos, há propostas que, se aprovadas, devem precarizar as condições de trabalho no campo, afrouxando regras atuais e dificultando a fiscalização.

O pacotão trazido pelo projeto de lei 6442/2016, apesar de sua importância, é menos conhecido do público diante de outras iniciativas em curso que podem causar impactos negativos na qualidade de vida dos trabalhadores rurais. A mais conhecida é a proposta do governo Michel Temer a Reforma da Previdência para a aposentadoria rural. Homens, que hoje se aposentam aos 60 anos no campo, e mulheres, aos 55, teriam que ter no mínimo 65 anos para alcançar o benefício. E ao invés de 15 anos de comprovação de trabalho no campo, seriam necessários 25 anos de comprovação de contribuição.

Na justificativa do projeto de lei, o deputado afirma que "ainda que seja claro o sucesso do agronegócio brasileiro, este ainda é limitado (…) especialmente pela regulamentação [de trabalho] arcaica, que não se adequa à realidade do campo". Segundo ele, "as leis brasileiras e, ainda mais, os regulamentos expedidos por órgãos como o Ministério do Trabalho, são elaborados com fundamento nos conhecimentos adquiridos no meio urbano, desprezando usos e costumes e, de forma geral, a cultura do campo."

Um exemplo de proposta polêmica é a prevista no artigo 29, que institui a "segunda chance" em caso de problemas trabalhistas no campo: "A inspeção do trabalho rural terá caráter educativo a preventivo e observará o critério da dupla visita em todos os casos. Constatadas infrações sanáveis na primeira visita o empregador será notificado a saná-las. Não sanada a infração no prazo da notificação, em segunda visita, será lavrado auto de infração e imposição das sanções cabíveis".

Segundo o parágrafo terceiro desse artigo proposto, isso não se aplica a "situações graves e de iminente risco", quando embasado "tecnicamente pela fiscalização". Contudo, na própria justificativa do projeto, o deputado critica que a aplicação de formas depende de intepretações dos auditores fiscais do trabalho e de juízes do Trabalho, "o que põe o produtor em situação de insegurança jurídica". Uma situação grave, como trabalho análogo ao de escravo, pode ter sua gravidade questionada por produtores, que solicitariam uma "segunda visita" futura.

Abaixo, a análise de dez pontos selecionados do projeto realizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e por assessores técnicos de parlamentares da oposição ao governo Michel Temer no Congresso Nacional:

1) O projeto determina que as relações de trabalho rural serão reguladas pela lei e pelos acordos individuais ou coletivos de trabalho, contratos individuais de trabalho e regulamento das empresas e que nas relações de trabalho rural não se aplica subsidiariamente a Consolidação das Leis do Trabalho  (Artigo 1º). Trata-se da tentativa de regulamentação do negociado sobre o legislado, em que a CLT e as demais normas reguladoras do trabalho rural não terão a mesma força que acordos feitos entre os trabalhadores e suas representações de empregadores.

As cláusulas que forem negociadas valerão apenas na vigência da convenção coletiva e não integrarão o contrato de trabalho permanentemente. Isso importa dizer que, quando expirar a convenção ou acordo coletivo, será necessária nova negociação coletiva. Até isso acontecer, os trabalhadores ficarão no limbo, sem qualquer direito assegurado. Desta forma, os trabalhadores perderão os benefícios que tinham conquistados.

2) Define empregado rural como "toda pessoa física que, em propriedade rural ou prédio rústico, presta serviços de natureza não eventual a empregador rural ou agroindustrial, sob a dependência e subordinação deste e mediante salário ou remuneração de qualquer espécie" (Artigo 3º). Isso abre brechas para o pagamento não salarial.

3) O tempo despendido pelo empregado até o local do trabalho e para o seu retorno, por qualquer meio de transporte, não será computado na jornada de trabalho (Artigo 5º). O projeto de lei ignora a realidade dos trabalhadores rurais, como a ausência de transporte e a dificuldade de acesso aos postos de trabalhos localizados nos rincões. Isso busca fugir da aplicação da Súmula 90 do Tribunal Superior do Trabalho que prevê que "o tempo despendido pelo empregado, em condução fornecida pelo empregador, até o local de trabalho de difícil acesso, ou não servido por transporte público regular, e para o seu retorno é computável na jornada de trabalho.

4) O projeto admite a prorrogação da jornada diária de trabalho por até quatro horas ante necessidade imperiosa ou em face de motivo de força, causas acidentais, ou ainda para atender a realização ou conclusão de serviços inadiáveis, ou cuja inexecução possa acarretar prejuízos manifestos (Artigo 7º). Trata-se de nova tentativa de submeter o trabalhador e a trabalhadora rural às necessidades econômicas dos empregadores.

5) Nos serviços caracteristicamente intermitentes não serão computados, como de efetivo exercício, os intervalos entre uma e outra parte da execução da tarefa diárias (Artigo 12). São considerados intermitentes, os seguintes serviços: a) ordenhador ou vaqueiro; b) aplicador de defensivos agrícolas; c) cozinheiras e auxiliares; d) plantio de sementes e mudas; e) colheita e armazenamento da safra e f) acompanhamento de parto de animais.

6) O trabalho noturno passa a ser aquele realizado entre as 21h e as 4h da manhã (Artigo 15). Tal medida busca reduzir o pagamento de adicional noturno. Hoje, nas atividades rurais, é considerado noturno o trabalho executado na lavoura entre 21h e 5h e, na pecuária, entre 20h e 4h.

7) O trabalhador rural residente no local de trabalho pode vender integralmente suas férias mediante decisão de acordo coletivo ou individual (Artigo 16). As regras atuais não permitem que isso aconteça porque o descanso semanal e as férias não são luxos: são elementos importantes para a saúde e qualidade de vida dos trabalhadores.

8) Passa a ser possível ao empregador rural a contratação com pessoas físicas ou jurídicas para terceirização de sua atividade-fim (Artigo 27), desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta. Só haverá responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços se este tiver participado da relação processual e tais obrigações constem do título executivo.

9) Quando o posto de trabalho tiver menos de 20 trabalhadores ou quando o trabalho for realizado em um local de difícil acesso, com declive acentuado, terreno alagadiço ou vegetação fechada não é obrigatório ter qualquer instalação sanitária ou itens básicos, como condições de higiene, água potável, locais adequados para acomodação, descanso e armazenamento de alimentos (artigos 160 e 161). Os trabalhadores terão de fazer suas necessidades em lugares improvisados, muitas vezes próximas ao local de trabalho.

10) Revoga a Lei nº 5889/1973, que estatui normas reguladoras do trabalho rural, e a portaria nº 86/2005, que aprovou a Norma Regulamentadora de Segurança e Saúde no Trabalho na Agricultura, Pecuária Silvicultura, Exploração Florestal e Aquicultura, a NR 31 (Artigo 166). Isso representará um desmonte na legislação protetiva do trabalhador rural brasileiro.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.