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Leonardo Sakamoto

Um partido vira "dono da Funai". E mãos de indígena são cortadas no MA

Leonardo Sakamoto

02/05/2017 16h51

Por Spensy Pimentel, especial para o blog*

Ainda aguardamos os detalhes, mas já é possível tirar algumas conclusões a partir do episódio ocorrido em Viana (MA), em que uma aldeia do povo Gamela em área de retomada foi covardemente atacada por um grupo de homens armados. Segundo Inaldo Gamela, liderança que também foi alvo do ataque e conversou conosco por telefone, pelo menos duas pessoas tiveram mãos quase decepadas e os médicos buscam agora reimplantar os membros e fazer com que elas possam recuperar os movimentos. Outros quatro atingidos seguem internados, e o número de feridos foi de, pelo menos, 13 pessoas. Ao site Amazônia Real, Inaldo já havia relatado ontem que eram mais de 200 pessoas os agressores e qualificou o ataque de "linchamento".

Os agressores teriam saído de uma reunião organizada a partir de convocação feita nos meios de comunicação locais. O trecho de um debate em uma rádio maranhense, ocorrido na sexta-feira, foi divulgado na internet pelo Conselho Indigenista Missionário, mostrando o clima de animosidade na região contra "essas pessoas que se passam por índios", como os Gamela são denominados pelo locutor. Até mesmo um deputado federal, Aluísio Mendes (PTN-MA), participou da conversa. Ainda segundo Inaldo Gamela, circulam informações na região de que diversos políticos estariam presentes na reunião de domingo (30) que antecedeu o ataque, o que ainda precisa ser apurado devidamente.

Seria bom poder cobrar uma atitude firme das autoridades e entender que se trata de um ponto fora da curva, de uma barbárie excepcional, resquício de antigas práticas violentas, hoje inaceitáveis. Nada disso: excetuando-se, talvez, o detalhe macabro da amputação das mãos, o episódio é só mais um alerta sobre a tensão que se acumula em muitas partes do Brasil, hoje, em função de diversas opções do atual governo.

Para agradar à base ruralista e evangélica, o governo está criando o caos na já precária assistência aos povos indígenas, via Funai e serviços de saúde da Sesai. Descria e cria cargos, muda diretores, contingencia orçamentos já minguados, submete cargos de extrema delicadeza política ao crivo de parlamentares no Congresso, vários deles associados a grupos ávidos por usar a estrutura do Estado para apoiar interesses, como os do proselitismo religioso. Mal um novo nomeado começa a tomar pé da situação e assumir compromissos, como era o caso de Antonio Costa, na Funai, já recebe a notícia de que será demitido. Obviamente, não há como tirar outra conclusão: a intenção é paralisar totalmente os trabalhos na área.

Um deputado ruralista chegou a dizer, recentemente, que a próxima medida a ser preparada pelo governo será a "reforma dos indígenas". Pelo jeito, só se for bem à moda das demais reformas propostas atualmente: um desmanche, na verdade.

Indígenas Gamela em área reivindicada por eles contígua à aldeia Cajueiro Piraí. Foto: Cimi

Empurrar com a barriga é, há séculos, uma das grandes estratégias de poder dos ruralistas. E por sinal, já o faziam com mestria nos governos do PT, chantageando o Executivo no Congresso Nacional enquanto usavam meios legais e ilegais para dificultar o trabalho de instituições como o Incra e a Funai – sem falar nas diversas tentativas de intimidação truculenta contra movimentos sociais ligados a camponeses e indígenas.

A diferença é que, mesmo com precariedade e resistências, estruturas mínimas conseguiam continuar operando em algumas das áreas de conflito entre ruralistas e os diversos grupos camponeses e de populações tradicionais. No Mato Grosso do Sul, por exemplo, o governo assumiu o compromisso de demarcar terras indígenas guarani-kaiowa e terena, mas não conseguiu concluir os trabalhos. A Força Nacional permaneceu no estado por largos períodos durante o governo Dilma, a fim de conter ataques dos ruralistas aos acampamentos indígenas em áreas reivindicadas, ao mesmo tempo em que se distribuíam massivamente às famílias indígenas o Bolsa Família e as cestas de alimentos, enquanto os trabalhos de demarcação de terras eram infinitamente postergados.

Em suma, o governo federal foi se especializando em enxugar o piso, sem conseguir interferir na torneira que pingava.

Os problemas se avolumaram, grosso modo, em duas frentes. Na Amazônia, onde já existe uma quantidade considerável de terras demarcadas para indígenas, quilombolas e outras populações tradicionais, a ganância de ruralistas e outros grupos, como os ligados ao lobby das mineradoras, freia os planos que possibilitem uma gestão das terras que escape às suas pretensões.

Os recursos para projetos nessas áreas têm que ser contidos, elas não podem dar certo, até porque, caso funcionem, serão a demonstração concreta de que é viável um modelo econômico sustentável alternativo na região. Em consequência, sobrevivendo à míngua, tais comunidades acabam vulneráveis às investidas de garimpeiros, madeireiros, caçadores etc.

No Maranhão e no Pará, por sinal, povos indígenas com terras já demarcadas têm tido que organizar grupos de autodefesa contra a invasão de madeireiros, expondo-se a todo tipo de risco. Isso acontece, por exemplo, na Terra Indígena Alto Turiaçu, a poucas centenas de quilômetros de Viana, onde ocorre agora o ataque aos Gamela.

O Maranhão, como se sabe, fica na região de transição entre Amazônia e Nordeste. E, nesse sentido, acumula problemas sociais característicos dessas duas áreas distintas. Em se tratando das terras indígenas, o caso dos Gamela é tipicamente nordestino: um povo indígena arbitrariamente dado como extinto pelo Estado, reivindicando vigorosamente seus direitos sobre terras ocupadas por fazendeiros.

Esse tipo de problema não é de resolução fácil, como se vê pelo caso de Mato Grosso do Sul: pode gerar décadas de violência e debate público infrutífero, se não houver uma intervenção firme do governo federal. Quando se chega a um desmantelamento de tal dimensão que o ministro da Justiça vem a público para dizer que "na verdade, a Funai é do PSC", como Osmar Serraglio declarou no último dia 20 de abril, pode-se entender o nível da irresponsabilidade com que o país vem sendo conduzido.

No áudio da rádio maranhense que anunciou a tragédia de domingo, por sinal, pode-se ouvir várias vezes as críticas à "ausência" do governo federal e o aviso de que a região está se tornando uma "bomba-relógio". Vários termos são muito parecidos com o que se ouve há anos no Sul de MS, no Oeste do Paraná, ou no Sul da Bahia – todas áreas onde esses conflitos fundiários envolvendo indígenas acumulam-se há décadas.

E, por sinal, caso alguém ainda acredite que se trata de um conflito isolado, ocorrido nos rincões incivilizados do país, vale observar: a primeira retomada gamela que deu origem à convocatória para o ataque contra os indígenas (houve uma segunda no domingo pela manhã) foi realizada na manhã de sexta (28), como parte das atividades da Greve Geral que aconteceu em todo o país.

(*) Spensy Pimentel, doutor em antropologia, é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia e pesquisador do Centro de Estudos Ameríndios da Universidade de São Paulo.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.