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Leonardo Sakamoto

Só pessoas invisíveis morrem de frio em São Paulo

Leonardo Sakamoto

19/07/2017 06h38

Na esquina da rua Teodoro Sampaio com a avenida Doutor Arnaldo, um homem foi encontrado morto, na tarde desta terça (18), em meio ao frio que atingiu São Paulo. Informada no meio da tarde por um telefonema ao 190, a Polícia Militar não encontrou sinais de violência. A temperatura média na cidade, às 15h20, era de 9,3°C.

Não bastasse o simbolismo do lugar, que separa as faculdades de Medicina e de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e fica a poucos metros do Instituto Médico Legal e na frente do Cemitério do Araçá, o corpo teria permanecido um longo tempo até que alguém notasse o que havia acontecido.

Nós, paulistanos, gostamos de imaginar que somos um povo acolhedor dada a profusão de sotaques, cores e origens que fazem parte de nossa formação. Mas, nessa cidade acolhedora, um homem morre, provavelmente de frio, e seu cadáver permanece em um dos cruzamentos mais movimentados sem que ninguém tenha se curvado antes para verificar o amontoado de pano. Se precisava de algo. Ou se ainda respirava.

Não é que a cidade respeite tanto a individualidade de cada um a ponto de não interferir em seu espaço pessoal. Ela só enxerga a parte mais vulnerável da população quando esta agride, com sua existência, o senso estético de um conceito equivocado de cidade linda. Como só os invisíveis morrem de frio, não chegam a ser um problema.

O que não é de hoje. São Paulo, como toda grande cidade do continente americano, recebeu os mais pobres que vieram construi-la com os braços abertos – chicote em uma mão e leis injustas na outra.

As coisas melhoraram com o tempo, mas não o respeito à dignidade e, dentro dele, o direito à moradia ou à assistência social. A falta de atendimento decente e suficiente para pessoas em situação de rua e de uma política de moradia que privilegie os seres humanos e não os ratos e baratas dos prédios fechados pela especulação imobiliária mostra que vai morrer muita gente ainda.

Quando o frio exterior é muito forte, o hipotálamo no nosso cérebro perde a capacidade de manter nossa temperatura – que, normalmente, permanece na casa dos 37° Celsius. As reações químicas relacionadas à manutenção da vida precisam de calor. Sem ele, músculos vão parando, a respiração e a circulação sanguínea diminuem, a sensibilidade some com o freio do sistema nervoso. A consciência vai se dissolvendo. Tudo até o coração parar de bater.

Passo há mais de um ano, quase que diariamente, por aquela esquina. Por contingências da vida, nos últimos dias tenho estado longe de lá. Ao saber da notícia, fui tomado por uma tristeza insistente. Não pela culpa de não ter passado por lá, mas pela dúvida: se tivesse passado, eu teria sido humano o suficiente para parar e ir perguntar se estava tudo bem, como já fiz antes? Ao menos ligaria para avisar um órgão público? Ou seguiria em frente, pensando em um milhão de coisas mais importantes da minha vida que, na verdade, são menos relevantes do que uma vida?

Consola saber que, diante da esquina, as barracas de flores da avenida Doutor Arnaldo tinham tulipas vermelhas.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.