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Leonardo Sakamoto

Mais uma favela queima em São Paulo. O fogo tem vontade própria?

Leonardo Sakamoto

08/09/2014 08h58

Um incêndio destruiu parte de uma favela no Campo Belo, bairro da zona sul de São Paulo, na noite deste domingo (7). Estima-se que, ao menos, 600 moradias tenham sido atingidas.

O poder público não risca o fósforo, gera o curto-circuito, entulha o lixo que foi combustível da desgraça de uma favela. Muito menos acende a estopa do balão.

Da mesma forma, não são as mãos de líderes religiosos segurando a faca, o revólver ou a lâmpada fluorescente que atacam homossexuais nas grandes cidades brasileiras. O Congresso Nacional, por sua vez, nunca ordenou a caçada aos indígenas no Mato Grosso do Sul, que insistem em reclamar terras que seriam suas por direito.

Aliás, volte lá e veja se há uma única impressão digital de homens de bem que moram na capital paulista entre os corpos de pessoas em situação de rua mortas a pauladas por dormirem no lugar errado e causarem pânico estético na população.

Como aqui já disse, um esforço descomunal é gasto na construção de discursos para tentar dissociar causa e efeito ou justificar o injustificável quando o assunto são temas como a especulação imobiliária, a intolerância religiosa, os interesses de grandes proprietários rurais que operam à margem da lei e ou o mais puro preconceito urbano. Quando deveríamos empregar tempo e recursos para construir processos participativos para a discussão e busca por soluções.

Falar sobre a política higienista de São Paulo é chover no molhado. Afinal de contas, as empreiteiras e os especuladores imobiliários estão aqui, doando loucamente recursos para as campanhas deste ano, emprestando parentes para cargos públicos, influenciando o cumprimento e o não cumprimento de regras, como o plano diretor. Enquanto isso, mais uma favela queimou em São Paulo.

Na capital paulista, a limpeza pelo fogo leva às lágrimas muitas famílias. E abre imperceptíveis sorrisos em alguns de olho no erguimento de bancos, salas de concertos e de exposições, teatros, sedes de multinacionais, escritórios da administração pública, restaurantes, equipamentos públicos. E apartamentos, para quem pode pagar, é claro. Sem contar na simples valorização de determinada região com a expulsão dos "indesejáveis" para as franjas da cidade.

Sabe como é, né? Aquele bando de gente pobre só joga o preço do nosso metro quadrado para embaixo e nos afasta, os "homens de bem", de perto. Temos um constante Pinheirinho em São Paulo, mas como segue a conta-gotas, não vira manchete. Banalizou-se, como a corrupção ou a superexploração do trabalho.

Ao longo do tempo, fomos expulsando os mais pobres para regiões cada vez mais periféricas. Eles, que têm menos recursos financeiros, gastam mais tempo e mais de sua renda com transporte do que os mais ricos que ficaram nas áreas centrais – com exceção das Alphabolhas da vida. Cortiços e favelas em regiões de fácil acesso abrigam centenas de famílias. Sem o mínimo de saneamento básico, às vezes sem água e sem luz. A maioria dos moradores desses locais prefere continuar assim, pois transporte é o que não falta e a casa fica próxima ao trabalho – ao contrário do que acontece em bairros da periferia, onde o trajeto até o centro chega a levar três horas, dentro de ônibus superlotados e caros.

Francisca Gonçalves de Sampaio, em entrevista a Martha Alves e Dhiego Maia, da Folha de S.Paulo, disse que esse é o quarto incêndio pelo qual passa na favela. Desta vez, perdeu quase tudo.

Lamentou que teria que usar o dinheiro que estava guardando para fazer a festa de aniversário da filha para se erguer novamente. "O dinheiro disso vai construir tudo", disse, olhando com tristeza para a filha.

O governo brasileiro inundou o país com bilhões em recursos para a construção, com o objetivo de modernizar a infraestrutura e erguer moradias, girando a economia e se esqueceu de que tinha gente morando nos lugares onde se quer construir.

Mas o fogo não esquece. O fogo nunca esquece. E o fogo acha que tem vontade própria. O problema é que, mesmo quando isso é verdade, ele acaba atendendo aos interesses de alguém.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.