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Leonardo Sakamoto

A febre do trabalho escravo - parte 2

Leonardo Sakamoto

28/11/2006 16h30

O debate causado pelo trabalho escravo na cadeira produtiva do aço vai longe. Mas, de antemão, mostra uma coisa. Se qualquer pessoa, instituição ou governo achou que daria para combater o trabalho escravo sem enfrentamento político e econômico, os últimos acontecimentos no âmbito do comércio exterior mostram que estavam enganados. Não se muda algo que está nas fundações sem balançar as estruturas.

Não é apenas por causa da miséria nos locais de origem e da ganância e impunidade dos donos de fazendas e carvoarias que surgem os servos de hoje. A razão de se explorar intensamente a mão-de-obra de regiões periféricas do capitalismo, como é o caso de partes da Amazônia e do Cerrado, está na própria natureza do sistema.

Trabalho escravo vem da busca por um custo da força de trabalho cada vez menor, garantindo assim a capacidade de concorrência de empresas da periferia do mundo.

Grosso modo, para produzir mais pelo mesmo custo, há duas alternativas. Ou você tem tecnologia para garantir o aumento da produtividade (o que acontece nos locais desenvolvidos) ou você torna a vida do seu empregado um inferno e corta custos para não ficar para trás (como na fronteira agrícola). É claro que a constante redução nos preços da matéria-prima beneficia a indústria, daqui e de fora, que pode, assim, garantir o aumento da sua margem de lucro.

Muitos ganham com isso – do fazendeiro inescrupuloso, passando por tradings, indústrias, bancos. Com certeza, quem não ganha é o sujeito coberto de pó preto, que cuida de um forno ardente por dias a fio sob o sol escaldante da Amazônia. Que desmaia por causa do calor e acorda cozido, se acordar…

Em outras palavras, o trabalho escravo é uma febre. Não é um a doença, mas um indicador de que o corpo está doente. Tratar a febre alivia a dor, mas não resolve.

O governo está tentando atacar a impunidade e melhorar a vida da população nos focos de aliciamento. As medidas amenizam o problema, mas não mudam a estrutura. Quando acabar o trabalho escravo, o que vai ser? Exploração extratamente degradante, mas com direito à liberdade para tomar banho em casa, feito regime semi-aberto? Ou seja, a exploração desce um degrau na escala de gravidade, mas segue cumprindo o seu papel.

O problema é alterar o sistema que possibilita a introdução e reprodução do capital nessas áreas periféricas, que pilha, explora e mata. Mudar o modelo de desenvolvimento para beneficiar uma reforma agrária ampla não resolve totalmente, mas daria uma bela ajuda. Outras medidas passam por políticas econômicas mais soberanas, mas isso eu duvido que o governo esteja disposto a fazer.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.