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Leonardo Sakamoto

As vítimas não contadas na Guerra no Iraque

Leonardo Sakamoto

22/12/2006 10h23

Hemoderivados são medicamentos fabricados a partir da industrialização do plasma do sangue humano. Um dos mais importantes é a imunoglobulina, utilizada no tratamento de deficiências do sistema imunológico, como AIDS e doenças degenerativas, como miastenia e esclerose múltipla. Milhares de pessoas no Brasil dependem desses medicamentos para poderem levar uma vida normal.

O problema é que, nos últimos meses, começou a faltar imunoglobulina humana endovenosa nas prateleiras dos hospitais, inclusive no Hospital das Clínicas de São Paulo, o maior do país. Tenho uma pessoa muito próxima a mim que precisa do medicamento e sei como a demora no tratamento causa complicações para a sua saúde.

O motivo é bizarro: os Estados Unidos, principal exportador de plasma sangüíneo, suspenderam as vendas devido à demanda por esses medicamentos pelos militares na Guerra no Iraque. O Ministério da Saúde afirmou que possui estoques de emergência e que a alternativa, no curto prazo, é buscar no mercado internacional outro fornecedor além dos EUA.

Duas lições podem ser tiradas desse episódio:

1) Apesar das iniciativas do poder público para substituir a importação de medicamentos, produzindo-os em solo brasileiro, o ritmo desse processo está muito lento. Perdem os pacientes e perde a economia. Com a crise gerada pela falta de imunoglobulina, o governo federal prometeu contratar uma empresa para fracionar o plasma brasileiro, para que sejamos menos dependentes de produtos externos. Espero que isso não fique retido no contingenciamento de gastos para gerar o superávit de 4,25% a fim de pagar a dívida externa…

2) Há compradores espalhados pelo mundo dispostos a comprar e vendedores nos EUA dispostos a vender sob o preço de mercado. O governo norte-americano ao intervir nessa relação econômica rasga a própria cartilha de livre comércio global que defende arduamente, mostrando que opera um capitalismo "self-service": usa as regras que lhe convém e deixa o resto de lado. Vale a pena registrar isso para quando nos acusarem de interferência em nossa própria economia.

No final das contas, a Casa Branca e o Pentágono vão ter sobre os ombros outras baixas causadas por essa guerra estúpida, além daquelas descritas pela contagem oficial de corpos no Iraque.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.