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Leonardo Sakamoto

E Kátia Abreu continua indo contra o combate à escravidão

Leonardo Sakamoto

06/07/2007 09h32

A senadora Kátia Abreu (DEM-TO) afirmou, em uma audiência no Congresso nesta semana, que as ações de fiscalização rural do Ministério do Trabalho e Emprego são marcadas por abusos e excessos e chamou a "lista suja" do trabalho escravo de "tribunal de exceção". O cadastro do governo federal divulga os empregadores que utilizaram esse tipo de mão-de-obra e serve de referência para suspensão de créditos bancários e para que empresas signatárias do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo cortem seus negócios com quem cometeu esse crime.

É a velha ladainha que os ruralistas sempre usam para atacar o combate à escravidão no país, uma vez que eles não têm muitos argumentos para justificar o uso desse tipo de mão-de-obra no campo.

Há, sim, amplo direito de defesa, pois só entram na "lista suja" os casos em que o empregador questionou as autuações e que, no fim de um longo processo administrativo, estas foram confirmadas. A lista nada mais faz do que dar publicidade às informações de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego, ou seja, um boletim atualizado semestralmente do resultado das fiscalizações e dos processos decorrentes. O corte de crédito e de clientela fica por conta do mercado, que agradece o fato do governo federal divulgar esses nomes possibilitando que ele se previna quanto ao risco social e financeiro que esses empreendimentos contém.

Outra coisa: as convenções e tratados internacionais que o país assinou impõem ao poder executivo a necessidade de colocar em prática ações para erradicar a escravidão contemporânea. As fiscalizações nada mais são do que isso.

As declarações foram dadas em audiência pública na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária, em que discutiu-se a situação social e trabalhista do setor sucroalcooleiro. (Um comentário: gostaria de saber de quem foi a idéia de juntar em uma mesma comissão os temas da agricultura e da reforma agrária. Isso é botar as raposas para discutir o futuro do galinheiro.)

Respondendo a uma pergunta do senador Eduardo Suplicy (PT-SP), sobre a existência de trabalho infantil e escravo no setor, a assessora da União da Indústria da Cana-de-Acuçar (Única), Elimara Aparecida Sallum, afirmou que quase não existem crianças trabalhando na cana (quase, ou seja, se for pouco pode?) e que falta ser firmada uma jurisprudência para definir o que é trabalho escravo.

Eu sei, parece piada, mas não é. Desde 1995, quando começou o combate sistemático às formas contemporâneas de escravidão no Brasil, há empresários que têm o mesmo discurso vazio. Mais de 24,5 mil pessoas foram libertadas do cativeiro no período e tribunais confirmam condenações milionárias por uso de escravos. O país é signatário das convenções número 29 e 105 da Organização Internacional do Trabalho, entre outras, que deixam bem claro o conceito. Temos um artigo no Código Penal (número 149) que trata especificamente sobre o crime. Que não é desrespeito à legislação trabalhista, mas atinge a dignidade e a liberdade do indivíduo e, portanto, os direitos humanos. Se precisarem, a Comissão Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) pode conversar com o setor sobre o assunto e tirar todas as dúvidas.

O interessante é que os membros do sindicato dos distribuidores de combustível, como Ipiranga, Petrobras, Shell, Texaco e Esso, vêm adotando um papel relevante no combate ao trabalho escravo no etanol, através do corte de relacionamento comercial com empresas flagradas com a prática. Se parte do mercado entende o que é, por que não a outra? Será que os distribuidores são mais espertos que os usineiros?

Na prática, eles entendem o que é trabalho escravo, mas sabem também que operar dentro dos limites impostos pela legislação diminui a margem de lucro – coisa da qual eles entendem melhor ainda.

Suplicy e o senador José Nery (Psol-PA), que afirmou que o trabalho escravo nesses setores é uma realidade, traduzindo uma mentalidade colonialista de uma elite rural do país, destoaram da ode aos heróis nacionais (usando uma expressão do nosso presidente, que assim se referiu aos usineiros) que foi a audiência.

Já ouvi a senadora Kátia Abreu fazer declarações semelhantes em outras ocasiões, afirmando que o Ministério do Trabalho e Emprego considera trabalho escravo apenas a falta de alojamentos e de alimentação e ignorando quando são mostradas fotos de pessoas que eram tratadas como bichos e impedidas de deixar seu local de trabalho. Ou de trabalhadores espancados por demonstrarem o desejo de irem embora para casa. Ela, junto com o seu colega de partido, Ronaldo Caiado, são os principais articuladores para impedir que a proposta de emenda constitucional que prevê o confisco de terras em que trabalho escravo for encontrado (que está tramitando há 12 anos no Congresso) seja aprovada.

Em tempo: a audiência aconteceu na semana em que estão sendo libertados 1.108 trabalhadores escravos de uma fazenda de cana no Pará.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.