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Leonardo Sakamoto

Diarios do Paquistão: crianças

Leonardo Sakamoto

20/08/2007 18h23

Uma das idéias religiosas que mais me incomodou desde quando eu era criança era o pecado original. Por que temos que pagar pelas faltas daqueles que vieram antes de nós? Por que crianças devem sofrer pelo o que seus pais fizeram? Pior ainda: sofrer quando seus pais não fizeram nada de errado, como no caso da servidão por dívida. Por isso, só postei fotos de crianças de dois vilarejos/acampamentos de refugiados que visitei hoje. Vocês vão entender o porquê.

Hyderabad – Visitamos hoje dois vilarejos onde vivem famílias que foram libertadas da servidão. Só para lembrar (pois ninguém é obrigado a acompanhar este blog diariamente…), por aqui o mais comum é que trabalhadores contraiam uma dívida com um proprietário rural (um empréstimo para financiar o casamento da filha, por exemplo) e fiquem trabalhando para ele até quitá-la. Isso acontece na agricultura, fabricação de tijolos, mineração e na fabricação de tapetes, entre outros. Normalmente, o patrão é desonesto e, por isso, a dívida tem longa duração. Às vezes, dura uma vida. Ou, além dela.

Quando um casal tem um débito com um "senhor de terras" (como aqui são chamados esses canalhas), os seus filhos não podem ir embora antes que os pais paguem a dívida, pois o trabalho da criança pode ser usado na amortização do saldo. E se os pais morrem, os filhos assumem o débito, que pode ser passado por gerações. Ou seja, há meninos e meninas que já nascem em cativeiro.

Hyderabad fica no Sul do Paquistão, na província de Sindh. Chegamos a essa cidade pobre, de um milhão de habitantes, pelo aeroporto de Karachi, a maior urbanidade do país, distante duas horas de carro por uma rodovia – que seria muito tranqüila se não fossem os alucinados motoristas paquistaneses que ignoram qualquer lei de trânsito e fazem o coração dos passageiros saltar para fora da boca nas ultrapassagens. Considerando que eles dirigem na mão inglesa, ou seja, ao contrário da nossa, a impressão para quem não está acostumado é pior ainda.

O primeiro vilarejo visitado, próximo de Hyderabad, se chama Sakanderabad (traduzindo, seria algo como "Alexandrelândia") e possui 600 famílias que foram libertadas ou fugiram do domínio dos senhores de terras. Para que eles se instalassem, o governo cedeu essa terra há uns 15 anos, quando foi promulgada a lei que torna ilegal a servidão por dívida. Lei que não consegue sair do papel, uma vez que inexiste um processo de fiscalização com resgate sistemático de trabalhadores após denúncias, como no Brasil.

Entidades do Paquistão acusam o governo de fazer corpo-mole e não atender a denúncias para verificar condições de trabalho em fazendas, olarias e minas. Os trabalhadores só têm sido libertados graças a decisões da Justiça paquistanesa que obriga os senhores de terra a soltarem as pessoas sem o pagamento do débito. Alguns vão para a cadeia. Outros, que detém maior poder político, ficam soltos.

Enquanto isso nosso Congresso Nacional aprovou uma lei – a famigerada Emenda 3 – que impedia os fiscais do trabalho de reconhecerem vínculos empregatícios entre patrões e trabalhadores, reservando esse poder à Justiça. Na prática, os grupos de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego não teriam mais o poder de libertar escravos, como acontece hoje. Os fazendeiros brasileiros, que usam intermediários, os chamados "gatos", para contratar empregados sem direitos trabalhistas, estariam protegidos com a nova lei.

Ao invés de fazerem turismo, ops, desculpe, de fazerem relevantes viagens de trabalho para a Europa, os deputados federais e senadores bem que poderiam visitar o Paquistão para ver uma prévia do que poderia ter acontecido se a sua lei – que atende a alguns empresários como uma luva – não tivesse sido barrada pela Presidência da República.

Voltando à Ásia, em alguns lugares do Paquistão a situação da ausência de fiscalização é um pouco pior. Em uma das províncias, o governo local fechou um acordo com os fabricantes de tijolos, famosos por usar servos na produção, para que a fiscalização fosse feita pelos… próprios empresários! Parece piada, não? É o sonho de muito fazendeiro no Brasil… Botaram a raposa para cuidar das galinhas – que ela vem devorando, ferozmente, com a anuência do Estado.

No segundo vilarejo que visitamos, Azadnagar e suas 130 familias, a situação é um pouco melhor. As casas têm melhor estrutura e há um curso de costura sendo fornecido por uma importante organização não-governamental paquistanesa (GRDO), que presta apoio a todos os dez vilarejos formados por servos libertados ou fugitivos.

Estive nos campos de refugiados de Angola, em 1999, e a imagem é muito semelhante à de lá. Casas feitas de barro e cobertas de palha, espreguiçando-se em um tom monocromático e poerento. Há algumas contruídas de tijolos, pelos moradores mais antigos, mas nem assim são muito melhores. A água não tem muita condição de consumo, mas é comsumida mesmo assim. Não há espaço para desenvolverem lavouras próprias e os homens trabalham fazendo bicos nas cidades ou, quando têm sorte, conseguem um dos mal-pagos empregos nas tecelagens locais.

Nos próximos posts, vou contas histórias de pessoas que fugiram dessas fazendas e hoje moram nesses campos.

Desculpem-me se o post não está dos melhores, mas estou com uma dor de cabeça me matando há quase 24 horas. E o sol também não ajuda: já estou derrentendo, e a previsão para os próximos dias para os lugares que vamos visitar é de 45 graus celsius.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.