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Leonardo Sakamoto

Diários do Paquistão: É um camelo ou um dromedário?

Leonardo Sakamoto

21/08/2007 16h58

Rodando pela Província de Sindh – Eu aposto que isso é um dromedário.

Discuti com meu companheiro de viagem, Xavier Plassat, a diferença entre camelos e dromedários. Que eu me lembre (do conhecimento adquirido através daqueles cartões que vinham com o chocolate Surpresa, no meu tempo de criança), dromedário tem uma corcova e camelo, duas. Xavier não ficou muito satisfeito com a resposta – também não ficaria com um argumento baseado em uma barra de cacau.

De qualquer maneira, esse bichinhos ocupam, em Hyderabad, o lugar que damos aos cavalos nas charretes. Transportam material de construção, feno, comida ou sacos cheios de braceletes. As paquistanesas de religião hinduísta gostam de usar muitos deles, como adornos, nos braços. Quando eles estão do cotovelo até o pulso, a mulher é solteira. Se estão no braço inteiro, ela é casada. Pudemos constatar isso em um vilarejo que visitamos na cidade de Karachi Hotel Chamber, durante uma reunião de uma organização de mulheres que tenta lutar contra o machismo e a exploração de seus pais, maridos e, é claro, senhores da terra.

Mas não são apenas as mulheres que são vaidosas. Andando pelas ruas do Paquistão, você nota um grande número de ruivos. Os homens passam hena no cabelo, na barba, no bigode ou nas costeletas para deixá-los dourados e "bonitos". Explicaram-me que eles pegam a própria planta, amassam e tingem.

Bem, mas não é esse o asssunto do post. Há um "ponto final" de dromedários/camelos em uma das saídas de Hyderabad, à beira de um lixão. O lixão, na verdade, é o acostamento da estrada, uma vez que a coleta pública não funciona e os aterros são improvisados em alguns locais estratégicos. O cheiro, como era de se esperar, é péssimo e atrai moscas. Azar dos camelos, de quem os conduz e de toda a cidade. Essa sujeira vem à tona quando chove, literalmente, como eu contarei para para frente.

Estamos em uma região de deserto e esses bichos estão bem adaptados para esse clima quente (que transformaria em sopa o chocolate Surpresa num piscar de olhos). O homem é que não estaria se não fossem os canais construídos a partir do rio Indo e que irrigam parte da província de Sindh, tornando-a agricultável.

Desde que chegamos ao Paquistão só havíamos visto corpos bem cobertos. Nas cidades brasileiras, é comum o uso de bermudas e shorts, ou mesmo de camisetas que deixam a barriga das mulheres de fora. Além disso, em dias de verão, nas praias ou mesmo em cidades, o povo tira a camisa sem cerimônia. Por aqui não, conseqüência da religião. À beira de um dos canais do Indo foi a primeira vez que vimos pessoas de short, no caso a criançada, se atirando nas águas barrentas para refrescar-se do calor.

Ao lado dos canais, encontramos plantações de cana-de-açúcar. Uma organização de trabalhadores reclamou conosco do valor que eles recebem – menos do que deveriam pelo serviço de corte de cana. É…Seja no Sul da Província de Sindh ou no interior do Estado de São Paulo, cortador de cana é tratado como sub-raça. Senhores da terra ou empresários do agronegócio, o que muda é a alcunha, pois a ganância é a mesma.

O salário mínimo no Paquistão é de Rs 4600 (Rs de rúpias paquistanesas, não de reais). Isso dá 57 euros (se eu não fui roubado na casa de câmbio em Islamabad) e, portanto, cerca de 154 reais. É pouco, mas eu precisaria dar outras referências para vocês terem uma idéia do custo de vida. Bem, vejamos: uma moto 125 cilindradas custa 60 mil rúpias, um casal de boi e vaca, 40 mil, um carro como o Fiesta nacional, 400 mil. E, é claro, um camelo, 25 mil.

Os trabalhadores reclamam que ganham até metade de um salário mínimo. Enquanto ficam no corte da cana, voltada para a produção de açúcar e de álcool, o resto da família produz cordas a partir da fibra de juta, na própria casa, para ajudar no orçamento doméstico.

Aliás, há também servidão por dívida no trabalho doméstico. Na comunidade de Hussein Khan Laghari, município de Tando Mohammed Khan, as mulheres estão se organizando, com a ajuda de entidades da sociedade civil paquistanesa, como a GRDO, para evitarem serem exploradas. Sara, uma muçulmana que trabalha para uma família, nos contou que já foi torturada pela dona da casa. Ela possui uma dívida de Rs 2 mil com a patroa e diz que não pode deixar o emprego sem resolver a questão. Mas está difícil… Afinal de contas, o salário pago a ela é uma miséria que não dá nem para sustento dos filhos (Rs 500 mensais por três horas diárias, todos os dias). Mas se pudesse, mudar de emprego também não adiantaria: sem quitar o débito, a fofoca correria e ninguém das classes mais ricas daria emprego a ela. Um verdadeiro cartel doméstico.

Mas voltando ao dromedário/camelo: hoje à noite, eu tive vontade de ter em mãos as 25 mil rúpias para adquirir um deles e fugir das enchentes causadas pela chuva em Hyderabad. Retornando de outros distritos vizinhos, onde havíamos visitado comunidades que estão tentando se livrar do trabalho servil, ficamos engarrafados no trânsito da cidade.

Caro conterrâneo paulistano que, como eu, já ficou um longo tempo preso nos congestionamentos pós-chuva nas marginais em São Paulo. Tudo isso aí é fichinha comparado com este pesadelo paquistanês. Vamos colocar alguns elementos para vocês entenderem melhor: primeiro, ninguém respeita leis de trânsito na cidade. Por exemplo, se não há vagas dentro das vans e ônibus, sem problema: o povo vai no teto ou apoiado nos parachoques. A polícia não está nem aí.

Os motoristas buzinam o tempo todo para evitar atropelar pedestres, bater em outros carros, fazer barbeiragens ou simplesmente porque já estão condicionados. Os semáforos não funcionam direito e as placas são para inglês ver. Segundo, não há coleta de lixo decente. O sistema de drenagem de esgotos também é péssimo e o escoamento da água da chuva não ocorre. Há alguns pontos da cidade, em aterros, que ficam meses cobertos de água após a temporada das chuvas – que é agora. Como o deserto fica aqui ao lado, a chuvarada é muito breve e intensa.

Hoje não choveu muito, mas a cidade alagou. Ah, esqueci de falar uma coisa: é comum cidades do Paquistão (com exceção de Islamabad, a capital, aquela ilha de irrealidade) ficarem sem energia de vez em quando. Agora, vamos colocar tudo junto: chuva, enchente, lixo, esgoto, trânsito maluco e falta de luz. O coitado do guarda de trânsito estava com água até o joelho e a única coisa que ele conseguia dizer é: "olha, acho que se você passar, seu carro vai parar na água". Riquixás (aqueles táxis minúculos para dois passageiros), carros, motos e vans paravam na água. A nossa não ficou, mas a água entrou por baixo. Não estou falando de ineficiência do sistema público, estou falando de inexistência. E Hyderabad tem mais de um milhão de habitantes.

Olha, foi um sacrifício bem grande mandar esse post hoje. Amanhã, vamos para o deserto. Se não tiverem mais notícias minhas, é que o camelo, ou o dromedário, por algum motivo, não conseguiu chegar até a internet café mais próxima para atualizar o blog.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.